Culto-Cilcuito
Um outro Porto
Na sua 17ª edição, o evento organizado no Porto pela Free Jazz Company (foto acima, na companhia de Ove Volquartz) tomou as feições de um festival e juntou outros grupos e músicos ao quarteto. Ouviu-se free à maneira de Archie Shepp, improvisação com idiomatismos punk, música de câmara espontânea e articulações com a dança butô e a poesia de choque, entre algo mais. Decididamente, há mais jazz e “improv” a Norte do que os oferecidos pela Porta-Jazz e pela Sonoscopia…
Foi o 17º evento público organizado pela Free Jazz Company desde há dois anos a esta parte, mas o primeiro com as dimensões que teve e envolvendo mais formações para além da que lhe deu origem, formada por quatro músicos “maduros” do Porto, o saxofonista Paulo Alexandre Jorge, o guitarrista Ulisses Teixeira, o electronicista João Magalhães e o baterista José Pereira, todos eles apostados em praticar uma improvisação com matriz no jazz. O Culto-Cilcuito 17 não podia, pois, deixar de ter o quarteto como núcleo do programa que se cumpriu de 9 a 12 de Março, desdobrando-se este em diversas configurações.
Primeiro tocou com o clarinetista baixo e flautista alemão Ove Volquartz como convidado, depois com a sua composição original, a seguir em duo de Teixeira e Magalhães com os “diseurs” de poesia Luís Beirão e António Pedro Ribeiro e com Volquartz. Ainda num outro duo, este inesperado devido a doença de Daniel Matias Ferrer, formado por Alexandre Jorge e Pereira e, finalmente, com Alexandre Jorge a surgir como interlocutor musical do bailarino de butô Sven Wu Wei. Foi de várias maneiras possível perceber o que move esta célula de trabalho com características muito particulares, capaz tanto do mais devastador vendaval de som como de uma sensível gestão das dinâmicas.
Não foi a primeira vez que a Free Jazz Company tocou com Volquartz, músico que tem no seu currículo colaborações com Cecil Taylor e Roscoe Mitchell. Esse primeiro encontro deu-se quando o projecto estava no início e o que consta – não pudemos então assistir a ele – é que pouco se pôde ouvir das contribuições do soprador germânico, tal a violência da investida portuguesa e as diferenças que o mesmo tem relativamente à chamada “estética do grito” abraçada pelo grupo portuense. Desta vez, Ove Volquartz teve todo o espaço que quis para se fazer ouvir: a música escolheu como foco não a energia, mas uma construção em fluxo, com graduações de caudal à medida em que ia correndo. Ou escorrendo, porque sugeria a água de um rio, sempre a mesma, sempre diferente.
Foi assim, em concerto realizado na Escola Superior Artística do Porto, que começou o festival, no dia 9, mas no seguinte, já sem Volquartz, a Company regressou (agora no Armazém 22, em Gaia) àquele que é o seu registo mais habitual: foi uma prestação virulenta e de uma enorme agressividade expressiva, num free jazz com atitude punk em que a electrónica de João Magalhães e a guitarra eléctrica sem efeitos de Ulisses Teixeira marcaram as diferenças em relação a essas duas referências. Na contraluz dos projectores, foi algo surrealista ver o fumo que subia da cabeça de Paulo Alexandre Jorge, qual panela de pressão prestes a rebentar.
O curioso é que esta prestação aconteceu precisamente na mesma sessão em que tinha sido convidada uma dupla que tem a sua origem no punk hardcore e que por estes dias pratica uma música improvisada que assume a sua conotação idiomática com o rock. Os jovens João Sousa e Daniel Ferrer deram os primeiros passos em Montemor-o-Novo, tendo o primeiro mudado para as imediações de Lisboa (faz parte do colectivo A Besta, radicado na Estudantina de S. Domingos de Rana) e o segundo partido para a Holanda depois de uma estadia no Porto - cidade onde Ferrer encetou uma parceria com Paulo Alexandre Jorge. O duo que constituem, Má Hora, não actuava há alguns anos, pelo que este “gig” significou uma particularmente feliz retoma. Com a claríssima intenção de contrapor a linguagem jazzística ao rock matricial dos dois músicos, juntou-se-lhes Ove Volquartz e, mais uma vez, este fez-se não só ouvir entre a distorção da guitarra e os “breaks” da bateria como pôde tocar a sua flauta sem ter de lutar contra obstáculos de maior.
A meio do concerto, Sousa e Ferrer trocaram de lugar e instrumento, e durante um momento estiveram ambos à volta da bateria. A música, essa, não mudou substancialmente com isso: tratava-se de um rock-jazz de garagem com aspectos do “prog” (mais de uma vez pensei nos King Crimson em versão “jam” de anos mais recentes) que incluía em si, também, algumas malhas de country, umas dedilhadas por João Sousa e outras com Daniel Matias Ferrer a aplicar um “bottleneck” sobre as cordas da guitarra. Houve alturas em que o impacto sonoro foi elevadíssimo e o “murro no estômago” próprio do punk aconteceu efectivamente, mas a preocupação de dar espaço aos sopros de Volquartz variou as abordagens musicais e, contrariamente ao que se poderia esperar, fez com que este concerto fosse mais suave do que o dos “cotas” – de registar que o integrante mais velho da Company, José Pereira, conta com 66 anos de idade.
Chegado ao dia 11, o Culto-Cilcuito baixou de intensidade. A “triple bill” arrancou no Armazém 22 com o Lisbon String Trio de Ernesto Rodrigues, Miguel Mira e Alvaro Rosso, contrabaixista do Uruguai residente na capital portuguesa. Com estes intervenientes, gerou-se a expectativa de que o grupo de cordas trabalhasse na área de fronteira ente as duas grandes correntes da música de câmara improvisada, aquela que segue as premissas texturais e tímbricas do reducionismo, de que Rodrigues é entre nós o principal cultor, e a que é fiel às lógicas narrativas e de fraseado da livre-improvisação original (Mira é também membro do Staub Quartet, com Carlos “Zíngaro”, Hernâni Faustino e Marcelo dos Reis). Assim sucedeu, e com um espírito colectivista que foi fundamental para os desenlaces: um dos executantes atirava com um som, outro acrescentava-lhe um mais e com o terceiro completava-se um acorde. Foi quase sempre este o procedimento construtivo utilizado, em plena interacção e sem solos convencionais, indo do muito simples, cru e despido até complexas filigranas, estabelecendo um («raro», como dizia Paulo Alexandre Jorge na apresentação) mundo pós-clássico e pós-jazz.
Assim se passou, igualmente, com a prestação do trio de Manuel Guimarães, Tiago Varela e Pedro Castello-Lopes. Os dois primeiros apresentaram-se na Invicta com os instrumentos que ultimamente vêm utilizando, um a guitarra eléctrica (Guimarães é sobretudo pianista e actua habitualmente com uma guitarra de caixa) e o outro um velho órgão vertical de ventoinha e um par de melódicas (já o ouvimos a tocar Fender Rhodes). O que fizeram foi minimalista e encantatório, colocando os ouvintes em estado de transe. Mas não porque a música fosse soporífera: a cadência rítmica mantida por Castello-Lopes com os seus tambores, os elementos de “bricolage” auditiva introduzidos por Varela (por exemplo, teclando as melódicas para produzir adicionais efeitos percussivos) e os apontamentos eléctricos da guitarra de Guimarães eram tão aéreos quanto densos e orgânicos. De súbito, mudava-se o rumo dos procedimentos e quem se tinha deixado inebriar despertava para uma nova realidade auditiva.
Já a intervenção em saxofone tenor e os vocalismos de Alexandre Jorge na apresentação da coreografia butô “Quiasmo” foram do quase nada (o silêncio correspondendo à quase imobilidade de Sven Wu Wei) ao gutural e ao sonicamente excessivo, com um estrondoso “overblowing” a contrastar com o número de notas utilizadas, em repetição de motivos ou com subtis desenvolvimentos, saltando de um extremo ao outro em fragmentos de segundo. Como comentava na ocasião Ernesto Rodrigues, o que diferencia Paulo Alexandre Jorge da generalidade dos saxofonistas do actual jazz criativo é o facto de ter mais a ver com Archie Shepp e o estilo dos Seventies do que com Ken Vandermark e as interpretações que hoje se avançam do modalismo free. Impressionante foi igualmente a performance de Wei, que transformou o seu corpo no de um animal, alterando-lhe a articulação, o centro de gravidade, o movimento, a extensibilidade dos membros, o arco do tronco.
Na tarde de 12 de Março, o centro de operações mudou-se para as instalações da Rosa Imunda, associação cultural que nessa precisa altura estava também envolvida na organização do Festival Feminista do Porto. Foi, aliás, aí que Alexandre Jorge sublinhou a motivação política da música que pratica com a Free Jazz Company, como forma de resistência contra a «sociedade comercialista» em que vivemos. O trio electroacústico 111, formado por Pedro Centeno, Svenja Wolff e Eadweird Muybridge, protagonizou a menos bem conseguida performance da série, mas eram bem interessantes os ingredientes propostos: “samples” em Mandarim e alusões ao Extremo-Oriente articulavam-se com sínteses, sinusoidais e o “stream of consciousness” de um artesanal instrumento com duas cordas, híper-amplificado, que pretendia fazer as vezes de um koto. Era suposto este colar todos os restantes elementos, mas em vez disso tornou-se demasiado presente, obsessivo e maçador.
A intervenção seguinte foi das mais impactantes do Culto-Cilcuito 17. A Free Jazz Company lançou um desafio à Poesia de Choque de Luís Beirão e António Pedro Ribeiro, parelha declamativa especializada nos poetas ditos “malditos”: a leitura do seminal “O Uivo” de Allen Ginsberg, com o envolvimento musical de parte do grupo e de Ove Volquartz. A visível debilidade física de Ribeiro levou a que este momento de equacionamento da improvisação com a modalidade “spoken word” fosse particularmente emotivo, assim como influiu nas reacções do público a situação que os Estados Unidos estão a viver. E se a electrónica, muito em especial os processamentos vocais, de João Magalhães já tinham dado que falar, neste caso o atarefado manuseamento que este fez do computador foi fundamental para o desfecho obtido.
O final era para ser realizado com a apresentação do álbum “Not That Different”, de Paulo Alexandre Jorge e Daniel Ferrer, acabado de sair, mas uma amigdalite do baterista gorou essa intenção. Foi Pereira quem, novamente, accionou peles e pratos, numa “improv” com o saxofonista que mais uma vez primou por ser comedida na projecção e económica nos materiais. O que veio confirmar o propósito de Alexandre Jorge deixar de ser encarado como o “Brotzmann português”, abrindo caminho a outras vias passíveis de exploração. Daqui por um ano, quando o Culto-Cilcuito se aproximar da sua 30ª realização, veremos em que ponto ele e a Free Jazz Company estarão e quem os acompanhará nessa viagem. Para já, ficou patente que, no Porto, há mais jazz e improvisação do que aqueles que a Porta-Jazz e a Sonoscopia oferecem – o que é um bom indício de vitalidade da cena local.