Kabas + Luís Vicente / Carlos Godinho + Folclore Impressionista + Clocks & Clouds
Começo auspicioso
O trompetista Luís Vicente iniciou o ano de 2017 com três idas à Parede para concertos muito diferentes – um de jazz de câmara que evocou Satie, outro na mesma noite em que a improvisação dominou sobre a aleatoriedade, um terceiro em contexto de electroacústica à maneira dos Nurse With Wound e finalmente outro – o melhor de todos – em contexto mais sincopado. Um bom arranque para o que mais fizer nos meses que aí vêm…
Ditaram as circunstâncias que o trompetista Luís Vicente iniciasse o novo ano com três actuações muito diferentes no mesmo espaço – o da SMUP, na Parede. Primeiro, foi um dos convidados portugueses – tendo o outro sido Carlos Godinho – do grupo belga Kabas, a 5 de Janeiro, nessa mesma noite tocando igualmente em duo com o percussionista. Depois, ali voltou a 15 como membro do colectivo Folclore Impressionista, numa sessão que incluiu também um solo de Jejuno e a projecção de filmes Super 8 e vídeos de António Caramelo e Bruno Silva, este com música do próprio, sob o pseudónimo de Ondness. Finalmente, surgiu no dia 20 como um dos integrantes do projecto Clocks & Clouds.
A capacidade de se integrar em situações musicais distintas sem numa comprometer a sua própria sonoridade e o seu estilo expressivo é a nota dominante a retirar destas aparições públicas. Face ao jazz de câmara dos Kabas, definido em grande medida pelas alusões a Erik Satie do pianista Thijs Troch, tivemos um Vicente decididamente mais lírico. Foi particularmente feliz a construir um trabalho melódico sobre as harmonias de Troch, mas já não tanto a tirar ilações melódicas das frases já por si melódicas saídas do teclado branco e negro. Quando o músico de Lisboa entra neste registo a sensação que fica é a de que está a acrescentar notas a algo que as dispensava.
Infelizmente, a prestação do quarteto + 2 foi demasiado curta para que a linguagem comum que estava a ser desenvolvida se definisse por completo. Faltou, por exemplo, haver uma maior interacção entre o trompete e a flauta de Jan Daelman. A combinatória prometia deliciosas equações tímbricas, mas os dois instrumentos surgiram habitualmente à vez. Com destaque qualitativo para o metal – as ambíguas águas entre o jazz livre e a livre-improvisação em que os Kabas navegam são as propícias para o trompetista dar o melhor de si.
Com Godinho, Luís Vicente demonstrou que improvisar e lidar com o acaso não é a mesma coisa. Foi ele a âncora da dupla, colando o que poderia de outro modo desintegrar-se e fazendo-o pelo encadeamento de texturas, regra geral abstractas. A abordagem que o elemento da Bande à Part realiza conta, por princípio, com o factor aleatoriedade, e foi sem dúvida interessante ver e ouvir Carlos Godinho a deixar que os acidentes (um objecto que cai, por exemplo) acontecessem, tirando partido disso mesmo. E digo que foi interessante por colocar uma questão de fundo: será que um acidente previsto, intencionado até, continua a ser um acidente? Luís Vicente fez com que a intenção, precisamente, dominasse.
Com Vicente, Helena Espvall (no seu quase inaudível violoncelo) e Diana Combo (a tocar bateria, que não os seus mais habituais gira-discos) a utilizarem os únicos instrumentos “convencionais” neste contexto, a música dos Folclore Impressionista foi sobretudo gerada por fontes electrónicas, com o acréscimo neste plano de Nuno Afonso, o mesmo de Falésia e Puma. O resultado teve alguma coisa que ver com a estética “dark” e de sedimentação rock dos Nurse With Wound e dos Coil, se bem que com uma elaboração mais orgânica. Para tal muito contribuiu o trompete, que conseguia posicionar-se acima do elevado volume geral dos sintetizadores ou meter-se por entre os interstícios deixados pela música, deixando perceber pequenos detalhes no meio de sólidas muralhas de som.
O solo em “laptop” de Jejuno, bem como a banda sonora do vídeo de Bruno Silva, já tinham deixado antever que as opções electroacústicas da sessão seriam as da tendência pós-industrial e pós-Throbbing Gristle, mas a inclusão de Luís Vicente deu uma cor jazzística a algo que por princípio não conteria essa dimensão. A verdade é que este se inseriu na proposta como se a sua intervenção lhe fosse implícita. De qualquer modo, foi naturalmente que sobressaiu a parceria dos teclistas e manipuladores de dispositivos João Paulo Daniel e Sérgio Silva, com a complementação visual algo surrealizante de Caramelo a integrar-se exemplarmente com o que se ouvia.
Foi em chão mais habitual que Vicente regressou à Parede, pois os Clocks & Clouds já têm rodagem feita e disco editado, muito embora este concerto tenha sido o primeiro de um reinício de actividade deste combo formado com Rodrigo Pinheiro, Hernâni Faustino e Marco Franco, depois de um período de paragem. A prestação do soprador foi magnífica, a mais relevante das quatro aqui referidas, e foi curioso verificar que o grupo em questão, identificado de origem com a música improvisada, voltou às lides para tocar jazz. Todas as raízes de Luís Vicente no hard bop vieram ao de cima, e justo é indicar que foi outro dos músicos presentes que o puxou para aí – Pinheiro costuma introduzir no seu jogo de piano bastas referências clássicas e contemporâneas, mas desta vez focou-se no tipo de fraseados quebrados de Thelonious Monk, nos abruptos “sheets-of-sound” de Cecil Taylor e em situações de síncope, de “groove” e de “swing”.
O jovem músico teve todas as condições para brilhar, e aproveitou-as. As luzes focaram-se, porém, no pianista. Esteve de novo imparável o mesmo Rodrigo Pinheiro que, num “gig” a solo no final do ano passado, em Xabregas, foi surpreendido pela tonitruante sirene de um paquete e a juntou à música como se de um “field recording” se tratasse. Já se tinha percebido e voltou a confirmar-se: quanto mais desafiantes forem os seus companheiros de palco, mais Luís Vicente nos dá. E quando está com Pinheiro, o trompetista dispara muito, muito longe. Os Clocks & Clouds têm neles um par imbatível.