Creative Fest
Medidor de tendências
A décima edição do festival da editora Creative Sources serviu, mais uma vez, para perceber por onde vão os caminhos da música improvisada e de como nesta área não existem cartilhas. Aqui ficam algumas palavras sobre o que a jazz.pt ouviu…
Com solos, duos, trios e um “ensemble” reunindo uma boa quantidade dos músicos improvisadores em actividade na região da Grande Lisboa, o Creative Fest realizou entre 17 e 19 de Novembro passado a sua décima edição. Nesta concentrou todos os concertos num único espaço, o que a Miso Music recentemente abriu em Belém (O’Culto da Ajuda) e que, além de uma programação especializada na área da electroacústica “erudita”, vem igualmente abarcando alguma música composta no próprio instante da execução. Esta cumplicidade foi, de resto, assinalada por Miguel Azguime, responsável do O’Culto e nome maior da música contemporânea em Portugal. Referiu este numa breve introdução as suas já antigas ligações com Ernesto Rodrigues, o patrão da editora Creative Sources, e o comum esforço por lutar contra a asfixia das práticas musicais que não são abarcadas pelas leis do mercado e nem por isso encontram lugar nas políticas culturais dos sucessivos governos.
Em todos os momentos foi clara a conexão de mais este Creative Fest com a actividade da Creative Sources. Exemplos claros foram os concertos da dupla Luís Lopes / Fred Lonberg-Holm, que nesta etiqueta tem disco acabado de sair, “The Pineapple Circumstance”, de Manuel Guimarães para apresentação de um muito aguardado solo de piano, “Flow Me”, ou de Guilhermo Torres, Tomás Gris e David Area, membros do grupo que toca no recente “Aleph”. No alinhamento do Creative Fest deste ano estava também uma actuação da Variable Geometry Orchestra, para gravação de mais um CD a editar pela Creative, e se as restantes performances não correspondiam a discos em circulação ou planeados, eram protagonizadas por gente “da casa”, casos de Carlos Santos, em dueto com Emídio Buchinho, ou de José Oliveira, num regresso aos palcos com parâmetros inesperados – um solo vocal –, ele que habitualmente surgia como percussionista.
Mas o Creative Fest não serve apenas para fazer o ponto da situação anual da Creative Sources. Nele mais uma vez foi possível ouvir projectos não-alinhados que há pouco tempo tiveram o seu arranque, como a parceria entre Maria Radich e Maria do Mar e o trio de Yedo Gibson, Jorge Nuno e Monsieur Trinité, além de encontros inéditos de músicos nacionais com estrangeiros, como a associação de Ernesto Rodrigues e Miguel Mira a Fred Lonberg-Holm, e de estreias absolutas de novas formações, como aquela – fora de série, pelo que se ouviu – que junta Rodrigo Pinheiro e Nuno Torres.
A plateia do O’Culto da Ajuda estava numerosamente preenchida por músicos de várias tendências (por exemplo, Marco Barroso, Gil Dionísio e Nuno Moita, figuras que não identificamos com o universo Creative Sources), o que é um sinal curioso do apreço da comunidade pelo trabalho desenvolvido por este grupo de pessoas. A Creative Sources pode não ter a relevância mediática da Clean Feed, apesar do nascimento de ambas mais ou menos pela mesma altura e de, como aquela, ter um catálogo que ronda os 400 títulos (sim, 400!), mas a importância que vai tendo para a cena internacional da improvisação livre é muito semelhante à que relativamente ao jazz tem a editora liderada por Pedro Costa. Algo a que não se está a dar a devida importância, num país tradicionalmente indiferente à criatividade dos seus artistas e aos feitos dos seus promotores culturais. A jazz.pt assistiu às prestações das duas Marias, do duo de Pinheiro e Torres e do de Lopes com Lonberg-Holm…
Psicose mística
A contribuição de Maria Radich e Maria do Mar para o Creative Fest teve a forma de uma performance-instalação, e se o processo foi muito simples (a vertente instalacionista limitou-se à distribuição pelo palco de uma série de livros abertos), o certo é que definiu a música tocada não apenas como uma arte temporal mas também de ocupação e utilização do espaço. Ao contrário do que se poderia esperar, os textos e as imagens funcionaram menos como “partituras” (não houve propriamente leituras ou interpretações de desenhos) e mais como referentes situacionais, sinais de trânsito. Nisto, as duas Marias foram fiéis ao carácter teatral da sua actuação debutante, há um par de anos, no MIA, na qual esteve envolvida uma máscara de coelho e predominou o movimento mudo. Mudo, mas com o volume bem alto.
Desta vez, porém, houve muito que ouvir do modo convencional como ouvimos: as vocalizações de Radich mimetizaram sempre as sonoridades de uma conversa acesa, com a cantora a responder-se a si mesma, ou lembraram os monólogos de múltiplos e simultâneos sentidos da esquizofrenia ou da glossolalia, parecendo querer sobrepor-se no plano auditivo à profusão verbal ou significante sugerida pelos livros expostos. A este jorro linguístico tão característico da psicose e do misticismo contrapôs do Mar, ao violino, uma mais controlada “voz”, estabelecendo uma ponte entre a música dita clássica e a improvisada. Por esta altura, está mais do que comprovada a pertinência e a solidez deste projecto, e bem que um disco podia ser o episódio seguinte – mesmo sabendo que com ele se perderia uma importante dimensão, aquela que só os olhos podem apreender e ficam evidentes nas fotografias aqui publicadas.
Aconteceu no limbo
Se o concerto de Maria Radich e Maria do Mar deu espaço ao tempo, o de Rodrigo Pinheiro e Nuno Torres como que suspendeu o tempo, assim libertando-nos do espaço e dando-nos a sensação de algo que acontecia no limbo. Pelo meio, o fotógrafo de concertos Nuno Martins dizia-me ao ouvido que parecia a música do cosmos, isso se algum som se pudesse ouvir no vazio, e tinha toda a razão. O estatismo temporal sentido derivou não só da pouca corporalidade dos sons como da própria estrutura que se criou, terminando a improvisação quase do mesmo modo como começou, com pequenas diferenças para não se estabelecer uma simetria, dado que esta pareceria artificial e havia o propósito tácito de que tudo soasse com a crueza de algo que nunca é propriamente musical, algo de elementar, primário.
Pinheiro e Torres nunca tinham tocado juntos neste formato e tentaram várias vezes encontrar-se antes desta estreia para ensaiarem alguma ideia que os unisse. Não conseguiram acertar as agendas e ainda bem, pois o resultado teve aquele tipo de magia efémera, circunstancial, que só a música improvisada por vezes consegue. É verdade que, no início, o piano do primeiro fez directas alusões a Messiaen, ou seja, a uma fórmula outra que não a que se estabeleceria, e que o segundo se centrou na manutenção das texturas saxofonísticas identificativas da escola reducionista, mas o “near silence” que vingou tinha outras coordenadas. Quando o pianista colocou quatro “e-bows” sobre as cordas interiores, explorando sustenidos e bordões, e o sax alto lhe providenciou envolvimentos de “bricoleur”, até as respirações da assistência se interromperam. Tínhamos chegado a um planeta estranho e isso é sempre precioso. Para este ouvidor, foi um dos melhores concertos do ano.
Pedais como instrumentos
Em guitarra e violoncelo respectivamente, mas tanto um como o outro rodeando-se de um grande número de pedais de processamento, Luís Lopes e o norte-americano Fred Lonberg-Holm posicionaram-se musicalmente de maneira bem diferente. Numa curtíssima intervenção, mas que por isso mesmo tomou o carácter de um “statement”, foi com questões de método e de meio que lidaram. Com os pés constantemente a ligarem e a desligarem botões, forjaram uma música não-desenvolvimentista, sim, mas que nunca parava, tudo mudando em poucos segundos. Nenhuma linearidade era possível. Cada situação tinha uma absoluta urgência, surgindo como uma inevitabilidade, mas era também inconsequente. Foi como se, com o comando da televisão, mudássemos de canal a uma velocidade estonteante.
Os pedais de efeitos acabaram por se revelar mais “instrumentais” do que os próprios instrumentos. Aliás, numa boa parte do “gig” o debruçado violoncelista limitou-se com uma mão a dedilhar o braço do seu cordofone, apenas para originar som, enquanto a outra procurava “tratamentos” imediatistas nas caixinhas com cabos que tinha diante de si. Foi uma invasão de electricidade numa noite que até aí tinha sido iminentemente acústica, e se o facto não levou a conotações com o rock ou com a música electrónica, também não as parecia ter com a própria “improv”, pelo menos a dominante. De resto, a esse nível, a mensagem que passou foi a de que improvisar, por estes dias, não tem uma cartilha. O Creative Fest é um medidor de tendências a que devíamos dar toda a atenção, e esta edição esclareceu mais alguns pontos evolutivos. Venha a próxima.