Seixal Jazz
Música, bipolaridade e foto-takes
Colin Stetson brilhou a solo numa edição do festival de que foi difícil formar uma imagem mental do mesmo, tal a disparidade dos concertos programados. O projecto “Grand Valis” de Hugo Carvalhais (foto acima, de Anabela Carreira) e o trio de Mette Henriette foram outros momentos fortes. Aqui se faz o balanço.
O Seixal Jazz já foi um dos marcos mais importantes do panorama jazzístico nacional e ainda hoje se destaca pela qualidade, apesar de parecer atravessar uma fase bipolar: no programa deste ano estiveram Colin Stetson e Dino Saluzzi. Não sei até que ponto aproveita a um festival abrir com um concerto de Dino Saluzzi e segui-lo com a Mette Henriette; são dois continentes musicais separados por um oceano. E se a ideia de querer satisfazer todos os públicos é interessante, a realidade impõe-se factualmente: calendarizar música fácil e dançante à sexta-feira e complexa e delicada ao sábado dificulta a composição de uma imagem mental do festival, que passa a ser um aglomerado de concertos “ad hoc”.
Nuevo tango
Por impedimentos vários, não pudemos ir à abertura do evento. A música de Saluzzi é fácil e atraente, inserindo-se numa linhagem de uso do bandoneón (o acordeão do tango argentino) no jazz inventada por Piazzola e que tem a sua versão mais popular na actualidade em Richard Galliano. O “nuevo tango” tem os seus mais brilhantes seguidores em Pablo Ziegler (pianista de Piazzola) e em Saluzzi, que abre a forma de Piazzola e a torna mais abstracta. As suas mais recentes gravações para a ECM ouvem-se em andamento, sem grande entusiasmo. O festival dizia que era a estreia em Portugal continental do argentino, mas não é verdade: tinha tocado na terça-feira anterior no Porto, com Maria João e Guinga.
A nota e o tempo entre notas
No sábado, o último dia da primeira semana, foi a vez do trio de Mette Henriette subir ao palco. A saxofonista tenor gravou um dos melhores discos de 2015 e, por isso, a curiosidade e a expectativa para este concerto eram elevadas. Henriette é o oposto da ideia feita de uma norueguesa e do jazz. Pequena, morena, estática, retirou do jazz toda a carga libertária negra - o grito, a revolta, a catarse - e ficou apenas com a espiritualidade e a liberdade. A sua música é feita com um vocabulário singular, transparente, muito poupado, que parece uma procura pela pureza das coisas. Katrine Schiøtt no violoncelo e Johan Lindvall no piano são os companheiros insubstituíveis, conhecem a música perfeitamente e, partilham as ideias de Henriette, construindo uma música altamente intricada. Música nova, ideias novas, uma imensa beleza, delicada mas ao mesmo tempo afirmativa, clara: o que é tocado é-o com convicção, com presença, sem receio: conta a nota mas também o tempo entre notas.
Foi um dos melhores concertos deste ano em Portugal e a sala quase cheia aplaudiu entusiasticamente esta apresentação que não teve intervalos nem pausas entre os temas ou solos. Foi um fio contínuo, um pesadelo para a malta da Smooth FM ou dos Cool Jazzes que, sem batidas nem tangos, ficaram aflitos, falaram durante a actuação e ressonaram. Lá está, quem tinha ido ao dia anterior e gostado, dificilmente poderia ir ao seguinte e sair igualmente agradado. Contudo, a nota dominante foi o fortíssimo aplauso e os discos venderam-se todos num ápice. Percebemos que a grande maioria do público esteve lá porque genuinamente queria ouvir música inovadora e actual. Não era concerto para atrair o patrocínio de multinacionais de telecomunicações ou de bebidas alcoólicas. Não dava para tirar “selfies”. Não servia para “dispor bem”, nem para cantar em grupo ou bater o pé, mas foi um privilégio poder ouvir aquela música em Portugal.
Bom, mas não muito bom
No dia 25 retomaram-se os trabalhos com o primeiro de três grupos portugueses, o quinteto do trompetista Gonçalo Marques. Antes do concerto o músico fez uma acção pedagógica com perto de 200 alunos das escolas da região, através de um concerto comentado. Segundo a organização, este primeiro contacto terá seguimento em várias outras sessões pelas escolas do concelho. Saúda-se entusiasticamente a presença significativa de grupos portugueses, mas voltamos à montanha russa estilística: admiro Gonçalo Marques, Carvalhais e Toscano, três excelentes músicos e com projectos musicais de enorme qualidade; mas dificilmente os colocaria no mesmo barco, e menos ainda a bordo com Stetson.
O concerto de Marques foi morno: música boa e bem escrita, interessante de seguir, com bons músicos, solos bons e tudo bom, mas nada de muito bom, nada de excepcional. Falta alegria, falta surpresa, faltam erros e imprevistos. Nem no “Autocarro Mexicano”, o tema que fechou a primeira parte, houve sol, picante, Sombrero Sam. Não me canso de admirar os músicos portugueses, a enorme qualidade técnica que têm, o esforço e o empenho que isso significa, a qualidade das suas composições: todas estas realidades, porém, não ofuscam uma música que não se afasta muito do expectável.
Para que é que serve
Ainda assim, no segundo dia português, voltámos ao subir a pique, ao nível a que tínhamos estado com Mette Henriette: o “Grand Valis” de Hugo Carvalhais é um caso nacional notável, um quarteto de violino, órgão, contrabaixo e bateria. O quarteto segue a escrita de Carvalhais que, mais do que um excelente compositor, com boas e originais ideias, tem o condão muito peculiar de propor situações musicais interessantes. Não é tanto a questão da escrita, mas sim do que fazer com a música e de saber para que é que ela serve. Ora, Carvalhais encontra respostas muito interessantes. A sua música jazza, improvisa, cria no momento, mas tem uma estrutura sofisticada e uma orquestração invulgar que a aproxima da das obras de um compositor contemporâneo. O quarteto toca excelentemente, mas é inevitável destacar o órgão de Gabriel Pinto, com uma linguagem originalíssima. Companheiro musical de Carvalhais desde sempre, Pinto é um músico extraordinário que tem estado escondido e que merece um maior reconhecimento. Ouvimo-lo em piano nos discos anteriores, mas em órgão é incrível. Grande concerto no Seixal, no regresso de Hugo Carvalhais a este palco.
Histórias contadas
O seixalense Ricardo Toscano é uma escolha natural para o festival, não só por ser um jovem do concelho, mas principalmente por ser um saxofonista talentoso. Claro que a expressão “um programa multifacetado”, dita pelo apresentador de cada espectáculo, é um eufemismo perante a disparidade absoluta de géneros e mesmo de valias musicais; veja-se, ou melhor, oiça-se: a música de Carvalhais é uma perspectiva nova sobre o jazz, a de Toscano é mais do mesmo e, porventura, não poderia ser de outra maneira, pois o saxofonista tem 23 anos apenas. Tinha-o ouvido há quase um ano, com os mesmos músicos (e um excelente trompetista) a tocar um repertório de hard bop e foi um enorme prazer.
Toscano tem uma técnica evoluidíssima e grande fluidez e todo o grupo tocou com prazer e vivacidade. Porém, aquilo que todos sabemos é que a passagem de bom executante para bom músico não é fácil. Pode-se aprender muito sobre história da literatura, regras de escrita, linguística, uso do Word, Latim, etc., mas daí a conseguir-se ser um escritor é um passo de gigante. E Toscano ainda só está numa fase em que domina uma das linguagens. Se vai conseguir fazer alguma coisa com esse domínio é uma incógnita, mas cabe-nos a todos incentivá-lo e dar-lhe espaço para descobrir o seu caminho. O concerto começou com três composições suas e que eram apenas isso: histórias contadas por outros com personagens diferentes. Depois evoluiu para um tema de Herbie Hancock, que é o território em que o quarteto mostra a sua qualidade. Resta-nos esperar que o jovem músico da terra (e não só, pois João Pedro Coelho é um pianista muito bom, Romeu Tristão é igualmente interessante no contrabaixo e João Pereira é um baterista peculiar) oiça muita música, abra os seus horizontes e consiga descobrir um caminho original para empregar toda a sua capacidade técnica e toda a sua criatividade.
Um mundo mântrico
O fecho do Seixal Jazz foi no sábado 30, com um concerto grandioso de um músico/mágico: Colin Stetson descobriu uma forma completamente nova de tocar saxofone e, como se isto não fosse suficiente, é um compositor e um improvisador de enorme qualidade. O concerto esgotou mas, estranhamente, a sala tinha vários lugares disponíveis; inicialmente pareceu-me que tal se poderia dever a um enorme acidente que paralisou a A2, mas o facto é que eles permaneceram vazios até ao final.
Por vezes há músicos que descobrem técnicas novas para os instrumentos, mas que não as conseguem transformar em música interessante, ficando apenas pelo lado circense (veja-se Stanley Jordan e o “tapping” na guitarra), mas Stetson cria um ambiente ascético com a sua técnica desumana de sopro contínuo, arpejos de estruturas minimais repetitivas, voz gutural, multifónicos e uma amplificação de relojoeiro suíço que permite que esta multiplicidade sonora gerada pela mesma pessoa e pelo mesmo instrumento funcione. Ficamos cansados com o hercúleo esforço físico e mental de coordenação e de alimentação com ar de um enorme saxofone baixo. De certo modo, a descoberta de Stetson é comparável à de Glen Gould quando renovou Bach através da amplificação do piano, sendo que a amplificação, em Stetson, é fundamental. Ouvimos demasiados sons para um só homem.
Depois, o americano geriu as ideias que estruturam a música improvisando: aumentou ou encurtou o tempo, repetiu ou abreviou as estruturas base para a construção dos temas. Colin Stetson tem uma carreira na improvisação total (um excelente disco em duo na Rune Grammofon com Mats Gustafsson), na pop (colaborações com Tom Waits, Arcade Fire, Bon Iver, TV on the Radio, Laurie Anderson, Lou Reed, The Chemical Brothers, Animal Collective, LCD Soundsystem, The National, entre outras) e neste seu mundo repetitivo, mântrico, em que a improvisação obedece a estruturas predefinidas. Foi um concerto excepcional, único, uma maneira perfeita de fechar um festival.
O Seixal mantém-se como um festival cheio de propostas interessantes e músicos cimeiros no panorama mundial, mas com uma programação cheia de arritmias. Além do concerto final, o melhor da edição deste ano, é fundamental relevar a enorme qualidade do “Grand Valis” de Carvalhais e do trio de Mette Henriette. Para o ano haverá mais, espera-se que com menos orçamentistas na sala, daqueles que opinam em voz alta sobre se aquilo é jazz, meio jazz ou um quarto de jazz. A programação tem um papel importante aqui também, pois é normal que alguém que vive numa dieta de Rui Veloso e Xutos & Pontapés digira mal Stockhausen ou Sciarrino quando pensava que vinha ouvir Trovante. Uma ideia interessante deste festival, que poderia ser copiada por outros, é a disponibilização de fotografias tiradas durante os concertos a 50 cêntimos, para que o público possa ter um contacto com os músicos, deixar-lhes uma palavra de apreço e sair com fotografias autografadas.