Angrajazz
Saldo (mais do que) positivo
Ficou bem no verde o balanço da 18ª edição do festival açoriano, com a própria orquestra “da casa” a dar o mote no primeiro e tradicional concerto, atirando-se a nada menos do que à “Far East Suite” de Duke Ellington. Christian McBride (foto acima) e Ralph Alessi brilharam.
Chegado à sua 18ª edição, o Angrajazz – Festival Internacional de Jazz de Angra do Heroísmo dividiu-se em seis concertos, apresentados entre os dias 13 e 15 de Outubro, sempre no palco habitual do Centro Cultural e de Congressos. Como faz parte da tradição, o evento arrancou com a actuação da Orquestra Angrajazz, projecto de formação promovido pelo festival com direcção de Claus Nymark e Pedro Moreira. A prestação deste ano esteve focada em Duke Ellington e contou com a participação de dois convidados especiais: Paulo Gaspar (clarinetes) e Ricardo Toscano (saxofone alto, convidado da orquestra pelo terceiro ano consecutivo).
Ambição Ellington
O concerto abriu com um “medley” de três temas ellingtonianos: “Just Squeeze Me”, “Daydream” e “Caravan”. Nesta primeira fase fez-se notar a voz de Sara Miguel, cantora que já se havia revelado em 2015. Contudo, o cerne da actuação foi a interpretação da épica “Far East Suite”, gravação editada em 1967, num verdadeiro “tour-de-force” da orquestra. Tendo sido recentemente reveladas as partituras desta suíte, a Angrajazz acedeu ao desafio dos professores/maestros e interpretou, sequencialmente, os seus nove movimentos. A performance da suíte, exclusivamente instrumental, arrancou com “Tourist Point of View” e, desde logo, a orquestra mostrou a sua segurança, fazendo jus à elegância ellingtoniana. Exibindo solidez, soube explorar as sugestões orientais da composição, destacando-se as intervenções a solo.
É imperioso destacar os solos fogosos de Toscano, que por esta altura já merece um cartão como membro residente da orquestra, pelos contributos que a ela tem dado. Será também justo destacar a participação de Paulo Gaspar, clarinetista que esteve particularmente brilhante no último tema da suite, “Ad Lib on Nippon”. A orquestra fechou a actuação com o über-clássico “Take the A Train”, tema que já havia sido escolhido para o “encore” do ano passado, assistindo-se ainda ao regresso à cena de Sara Miguel, encerrando a contribuição numa toada festiva e popular.
Vertigem supersónica
O primeiro dia de concertos continuou com o trio do celebrado contrabaixista Christian McBride. Acompanhado por Christian Sands (piano) e Jerome Jennings (bateria), McBride trouxe na bagagem o seu mais recente disco, “Live at the Village Vanguard” (Mack Avenue, 2015). Nesse álbum, o baterista foi Ulysses Owens Jr., mas Jennings foi um bom substituto, aguentando a alta intensidade rítmica. Também o piano de Sands cumpriu plenamente a função que lhe era destinada. Apesar da boa prestação, ambos ficaram inevitavelmente na sombra do líder, que tratou de se mostrar sem modéstia. Começou logo em vertigem supersónica, a dar a mote para o resto do concerto.
Contrabaixista virtuoso, McBride conhece o valor de uma bela “swingada”. Além de desempenhar com distinção a função rítmica, o contrabaixo assumiu também um papel melódico, na condição de solista. A exuberância técnica foi sendo exposta desde o primeiro tema, num concerto que se traduziu num verdadeiro espectáculo de pirotecnia musical. O trio arrancou com dois temas acelerados, “Tangerine” e “Interlude” (de J.J. Johnson), e abrandou ao terceiro, “Sands Dune”, um original do pianista. Pelo meio, McBride homenageou o contrabaixista Ray Brown e interpretou um popular tema de Michael Jackson, “The Lady in My Life”.
Do repertório destacou-se ainda a interpretação de “Who Can I Turn To (When Nobody Needs Me)”, balada soul popularizada por Sammy Davis Jr., com a emoção à flor da pele alimentada pelo arco de McBride. Escolha pouco óbvia foi a revisão de “Car Wash”, da banda sonora do filme homónimo de 1976 (uma comédia com Richard Pryor e George Carlin), que levou o grupo a investir numa toada “funky”. Mesmo com os bons contributos dos outros músicos, McBride não deu hipóteses e, entre o pizzicato picadinho e o arco sentimental, roubou o “show” sem misericórdia.
Alto nível
Se o primeiro dia de festival fez-se em tempo de Verão, já o segundo, sexta-feira, teve um céu sombrio. Também a música foi menos soalheira, menos acesa, mais cerebral. Na primeira parte actuou o projecto Subtractive Colors, liderado pelo saxofonista Desidério Lázaro. O grupo reúne o trio base (Mário Franco no contrabaixo e Luís Candeias na bateria), com três convidados adicionais: João Capinha (saxofones), Paulo Gaspar (clarinetes) e João Hasselberg (contrabaixo e baixo eléctrico). Sendo o primeiro concerto de uma “tour” que vai terminar no Centro Cultural de Belém, não terá sido ainda um espectáculo perfeito. Ficou também a ideia de que o som não estaria perfeito. A formação é variável, consoante os temas, e o sexteto revelou uma boa dinâmica colectiva.
A principal característica do projecto são as composições e os arranjos, que aproveitam as possibilidades instrumentais e promovem cruzamentos originais. Desde logo, Lázaro confirmou as suas qualidade e versatilidade como instrumentista, excelente no saxofone tenor, com uma imparável fluência discursiva, e igualmente notável no saxofone soprano. Um dos momentos mais marcantes aconteceu com o tema “Silent Hommage”, que arrancou com um duo de clarinete e contrabaixo, entrando depois o líder. Para fechar, o sexteto interpretou um tema de Desidério que foi composto enquanto esperava pelo nascimento do seu filho, sendo provavelmente aquele que tem um motivo melódico mais interessante, fechando o “gig” em altíssimo nível – de realçar os excelentes solos de Paulo Gaspar no clarinete baixo e de Lázaro no saxofone soprano.
Alessi sem rede
O segundo dia do Angrajazz foi protagonizado pelo Baida Quartet do trompetista americano Ralph Alessi. Estreado em disco no ano de 2013 na ECM, a formação original juntava a Alessi o pianista Jason Moran, o contrabaixista Drew Gress e o baterista Nasheet Waits. Ao segundo CD do grupo, editado já este ano, novamente pela ECM, Moran saiu, sendo substituído por Gary Versace. No festival da Terceira, o baterista original não compareceu, indo em seu lugar Mark Ferber. A entrada deu-se com o trompete a solo, mostrando um Alessi sem rede, apenas com o seu som puríssimo. Acrescentou-se depois a bateria, seguida do piano e do contrabaixo. O quarteto tocou as suas composições originais, sempre trabalhadas com elegância.
Gress foi uma âncora, assegurando a estabilidade do grupo, Versace cumpriu com eficácia, sem deslumbrar, e a bateria de Ferber mostrou precisão. O trompete de Alessi já é, habitualmente, suave, aveludado. Quando se serviu da surdina, revelou alguma familiaridade com o som milesiano. Menos vibrante e enérgica do que num concerto típico de jazz, a música de Alessi expõe uma peculiar melancolia – como o tempo nublado que marcou essa sexta-feira. Para o final ficou guardado o excelente tema “I Go, You Go”, que com o seu balanço ficou a embalar o público pela noite fora.
Tributo a Gil
A última noite de Angrajazz teve uma proposta vocal, a da cantora americana Chareneé Wade. Assistimos primeiro a uma entrada instrumental, subindo a cantora ao palco depois e espalhando simpatia no contacto com o público. Wade trazia na bagagem o disco “Offering: The Music of Gil Scott-Heron & Brian Jackson”, editado no ano passado. Este projecto é focado na revisão de temas de Scott-Heron, que gravou discos históricos como “Winter in America” e “Pieces of a Man”, tendo sido uma voz activa de intervenção social. Poeta original, foi chamado de “Dylan negro”, sendo considerado um precursor do hip-hop. Qualquer homenagem que lhe seja feita é merecida e esta revisão de Wade não só é bem-vinda pela escolha do homenageado, como vale por si mesma.
Em Angra do Heroísmo, Charenée disse que ia fazer “congregation music” e pediu que o público se envolvesse e respondesse com entusiasmo, como se estivesse numa missa americana. A assistência não mostrou o entusiasmo solicitado, mas aprovou a cantora e a proposta, A música assenta em adaptações jazz, refinadas, mas estas não são versões “feel good”: a revisão instrumental, sendo sofisticada, mantém a intensidade dramática original de Scott-Heron. Com voz segura, a vocalista fez por vezes lembrar Nina Simone. O trio que a acompanhou – Oscar Perez no piano, Paul Beaudry no contrabaixo e Darell Green na bateria – demonstrou firmeza, com o piano em claro destaque.
Pelo palco açoriano passaram revisões de temas como “Home is Where the Hatred Is”, “Song of the Wind”, “Peace Go with You, Brother” e “A Toast to the People”. Não surgiram canções mais conhecidas como “The Bottle” ou “The Revolution Will Not Be Televised” e de fora ficou também material de “I’m New Here “, o disco de regresso em 2010, que se revelou excelente, equiparado aos clássicos dos anos 1970. A selecção foi, no entanto, equilibrada. A principal qualidade do projecto está nos arranjos, sempre sóbrios e respeitosos, não promovendo qualquer tentativa de exibicionismo técnico. Esta revisão da obra de Scott-Heron vale a escuta e a voz de Charenée Wade conquistou.
Veteraníssimos
Para encerrar o festival, o palco do Angrajazz acolheu o colectivo de veteranos The Cookers. Poderiam ter ficado por casa a usufruir da reforma, mas aqueles músicos americanos preferiram juntar-se para praticar o hard bop robusto que foi sempre o seu. Continuam a gravar discos e a viajar por todo o mundo espalhando a sua arte. Apresentaram-se nos Açores quatro veteraníssimos: Eddie Henderson (trompete), George Cables (piano), Cecil McBee (contrabaixo) e Billy Hart (bateria). A estes juntaram-se três músicos de uma geração mais jovem: David Weiss (trompete), Donald Harrison e Craig Handy (saxofones).
O concerto foi introduzido por um solo de McBee, entrando depois o grupo com toda a força. Desde logo, viu-se que a secção rítmica estava sólida, apesar de aí estarem dois dos músicos mais velhos do grupo - McBee (81 anos) e Hart (75). O septeto trabalhou sempre em alta intensidade, com uma excelente dinâmica colectiva. Weiss cumpriu o papel de mestre-de-cerimónias, apresentando os músicos e interagindo com o público.
Foi-se sucedendo um conjunto de composições da autoria de membros da banda, como “Peacemaker” (de McBee), “Teule's Redemption” (de Hart) e “Beyond Forever” e “Farewell Mulgrew” (de Cables). O grupo mostrou-se sempre a bom nível e, individualmente, destacaram-se sobretudo os saxofones, muito enérgicos. Também Cables, do alto dos seus 71 anos, mostrou uma inesperada agilidade. A bateria e o contrabaixo surpreenderam pela positiva, sobretudo o primeiro, muito intenso. Nos trompetes, Henderson cumpriu, mas Weiss foi talvez o menos interessante dos sete. Na globalidade foi uma boa actuação, que fechou com nota positiva o festival açoriano.
Fechada esta edição, que se confirmou mais uma vez como um sucesso de público, a organização avançou já com datas para 2017: de 4 a 7 Outubro. Esperemos que o festival continue a cumprir as expectativas.