Julho é de Jazz
Ornette esteve em Braga
O gnration dedicou a edição deste ano do seu ciclo de jazz a Ornette Coleman, convidando as formações participantes a interpretar o grande mestre. Foi uma bela homenagem, com Hugo Carvalhais a deslumbrar.
Um ano após a morte do compositor e multi-instrumentista norte-americano, o gnration apresentou o ciclo “Às Voltas com Ornette Coleman”, inteiramente em sua memória. A série de eventos teve lugar ao longo das duas primeiras semanas de Julho e para o efeito levou a Braga algumas referências do jazz nacional.
O ciclo iniciou-se no dia 8 com uma emissão especial do programa Só Jazz, da Rádio Universitária do Minho, que teve como convidados Ivo Martins, director do Guimarães Jazz, e Hugo Carvalhais, músico que participou neste ciclo com o seu Cryptic Quartet. Seguiu-se a exibição do documentário “Ornette: Made in América”, em que se explora a vida e a obra do grande impulsionador do movimento free jazz nas décadas de 1950 e 60.
No dia 9, o pátio exterior do gnration recebeu o Red Trio e a dupla de Carlos Bica e João Paulo Esteves da Silva, por esta ordem. O calor abrasador que se fez sentir em Braga não demoveu os amantes do jazz que, por certo, aproveitaram bem a agradabilidade do espaço irregular - com desníveis e inclinações que em tudo beneficiam a acústica e o conforto (com a ajuda de almofadas).
Primeiro placas tectónicas, depois cristais
O Red Trio de Hernâni Faustino no contrabaixo, Gabriel Ferrandini na bateria e Rodrigo Pinheiro no piano abriu com um solo do contrabaixista, a que se juntaram um rufo de tarola e as primeiras notas do piano, numa abordagem livre e de intensidade crescente. Aliás, intensidade é a palavra de ordem deste “power trio”, só quebrada por alguma dispersão rítmica ou laivos sonoros após explosões e paragens súbitas. O piano de Pinheiro vagueou pelo onírico, o repetitivo e o fantástico, sendo que todos estes modos nos eram sugestionados pelos harpejos agudos ou pelo ondular melódico e as cadências harmónicas. O contrabaixo de Faustino foi tectónico e ligou ao chão, em pizzicato ou com arco; na bateria Ferrandini movimentou as placas.
Durante os três temas apresentados foram vários os momentos em que a influência de Ornette Coleman se fez notar, mais evidente no fraseado provindo do piano
Após um breve intervalo, Carlos Bica (contrabaixo) e João Paulo Esteves da Silva (piano) deixaram-nos em ponto de rebuçado. O virtuosismo de ambos, aliado à gestão do repertório apresentado, rendeu o público à sua subtil mas hábil manipulação (ou evocação) de emoções. Começaram com “Monsieur le Prince” de Coleman, numa interpretação muito própria, sem, contudo, desvirtuarem o original. Depois, “Believer” e “Profeta” de Bica levaram-nos numa viagem apaixonante, plena de drama e de uma beleza singular. Não será despiciendo o facto de termos um duo desta craveira a obrigar-nos à concentração máxima no que ia sendo veiculado, enquanto não nos libertámos e nos perdemos nos nossos devaneios.
O público respondeu efusivamente a cada tema e o movimento da cabeça ou dos pés durante o concerto ia denunciando alguns conhecedores do trabalho de Bica. “Blues Connotation” de Coleman e mais dois temas de Bica completaram o programa. Uma nota especial para o som de contrabaixo de Bica, sempre cristalino até nas passagens mais rápidas, algo só ao alcance de poucos (mestres).
Urros, aplausos, assobios e gritos
A 16 de Julho foi a vez de o João Guimarães Quarteto interpretar “The Shape of Jazz to Come” e de Hugo Carvalhais apresentar o seu Cryptic Quartet em versão acústica com dois saxofones (Liudas Mockunas e Fábio Almeida).
Em abono do primeiro quarteto temos a dizer que o desafio proposto foi um cometimento ousado mas assumido. João Guimarães (saxofone alto) fez-se acompanhar nesta empresa por Ricardo Formoso (trompete), Tó Torres (bateria) e Simon Jermyn (baixo eléctrico de cinco cordas). O quarteto cumpriu, mas não impressionou. Convenhamos que competir com Coleman, Cherry, Haden e Higgins nunca seria tarefa fácil, até para os mais versados. Mas, por reconhecer a qualidade dos músicos e dos seus projectos individuais, gostaria que não tivesse sido uma mera interpretação - seguindo a partitura - e tivessem re-interpretado o álbum a seu bel-prazer.
Em abono do segundo quarteto - tendo eu já feito parte dele em duas ocasiões na sua versão eléctrica (i.e. “live sampling” e sintetizador analógico) -, devo dizer que os dois saxofones foram do melhor que lhe aconteceu. A interacção da dupla Mockunas e Almeida foi fora de série! A irreverência no grasno, o entusiasmo e a criatividade das palhetas arrancou do público urros, aplausos, assobios e gritos, tal foi o êxtase! A politonalidade e as dissonâncias resultantes, as modulações derivadas da ideia de “harmolodics” proposta por Coleman (i.e., transposição de qualquer som para o que se toca sem se abdicar da própria identidade no processo) e o gozo dos músicos ficaram bem patentes nas duas suites, em que se misturaram temas de Carvalhais com temas de Coleman evidenciando o legado “free”.
Os solos de Costa e Carvalhais também foram momentos altos, mas foi o tema que fechou o festival que trouxe a apoteose. A frase cativante em crescente repetição e floreada com os contributos destes excelsos músicos foi o tributo devido ao incontornável revolucionário que foi (é!) Ornette Coleman.