Granular Fest
Improvisos no Aquário
O festival da Granular voltou este ano a acontecer na ZDB, em Lisboa, perante plateias cheias e com concertos regra geral de grande qualidade. Foram sete em duas noites apenas, numa mostra da diversidade da improvisação experimental que por cá vai acontecendo. A jazz.pt ouviu, viu e conta como foi…
Em 14 anos de existência, a Granular foi desenvolvendo uma actividade de programação nos domínios da música dita experimental (com claro relevo para a improvisação, ou não fosse o seu presidente o violinista Carlos “Zíngaro”) que sempre se pautou por incentivar a criatividade dos músicos, colocando-os em situações novas e diferentes. Fosse pela constituição de formações inéditas ou pela tematização e conceptualização das iniciativas, a associação contribuiu em muito para o especial dinamismo a que hoje assistimos na cena portuguesa. Este ano, o Granular Fest foi mais uma vez assim, com sete concertos de combinações inter-individuais nunca antes tentadas. Nos passados dias 15 e 16 de Julho, o festival encheu o Aquário da ZDB, em Lisboa, com improvisadores nacionais, estrangeiros residentes em Portugal (casos de Ulrich Mitzlaff, Albert Cirera e Alvaro Rosso) e os visitantes brasileiros do duo Rádio Diáspora, Rómulo Alexis e Wagner Ramos. Aqui ficam algumas notas de audição…
Emídio Buchinho / Carlos Santos / Nuno Morão
Para quem apenas conhece Carlos Santos dos discos da Creative Sources em que toca com Ernesto Rodrigues, mais ou menos alinhados com a estética reducionista da improvisação, o que o mesmo fez com um sintetizador e um computador no concerto de abertura do Granular Fest terá sido uma surpresa. O músico de Lisboa subiu o volume e foi o elemento estruturante e condutor da actuação do trio que formou com Emídio Buchinho na guitarra eléctrica e Nuno Morão na bateria e em percussões várias. Buchinho foi, talvez, demasiado discreto, mas o seu plano de acção foi-se estabelecendo na complementação com uso de preparações do que as electrónicas faziam, por vezes ficando difícil perceber de onde vinham os sons. Morão contribuiu com um encadeamento de texturas que agitavam o que demais acontecia, dando vitalidade e energia ao conjunto. Foi um momento de enorme beleza e que visivelmente agradou ao público,
Ricardo Webbens / Gustavo Costa
Com sintetizadores analógicos de um lado (Ricardo Webbens) e uma bateria do outro (Gustavo Costa), o primeiro dos duos da noite de abertura do festival da Granular assumiu por inteiro os poucos meios de que dispunha e construiu a sua intervenção a partir daí. Mas não foi só isso que fez: tomou como ponto de partida os tipos de discurso específicos a cada um dos instrumentos, muito diferentes entre si, e apostou em criar música sem tentar aproximar os respectivos universos ou encontrar um compromisso ou um terreno comum. Webbens adoptou a linguagem electrónica que tem sido distintiva de Rafael Toral, com quem, de resto, costuma tocar, e o baterista do Porto focou-se numa marcação rítmica pujante situável entre o tribal e o rock. Resultou uma estranha, mas convincente, música da selva urbana, retro na sonoridade e futurista na amplitude.
Abdul Moimême / Albert Cirera
O melhor da primeira sessão do Granular Fest veio com a dupla improvável de Abdul Moimême e Albert Cirera, o primeiro com uma guitarra (reduzida à ponte e construída pelo próprio) manipulada com preparações, se é que ainda podemos utilizar o termo em se tratando de objectos metálicos de grandes dimensões que mais parecem esculturas, e o segundo com os seus habituais saxofones tenor e soprano. Moimême está cada vez mais próximo do legado pós-AMM, criando fluxos suspensivos que ora mergulham no mundo microscópico dos sons, ora se agigantam quando menos esperamos, entrando pelos domínios do noise. Com tal interlocutor, qualquer saxofonista se veria em apuros, mas não Cirera. Recorrendo a um sem-número de técnicas extensivas, com apreço especial pelos “slap tongues”, pela respiração circular e pela criação de burburismos com água retida na boca, o músico de Barcelona tornado alfacinha foi particularmente inventivo na forma como dialogou com o seu parceiro de circunstância, e não só cumpriu brilhantemente os desafios que lhe foram lançados como propôs outros que igualmente bem resolvidos por Moimême. Excelente…
Diogo Lopes “Matière et Mémoire”
O segundo dia de trabalhos do Granular Fest teve início com um jovem protagonista da cena experimental portuguesa, Diogo Lopes, e por sinal o único do cartaz não envolvido nos circuitos da música improvisada e do jazz livre. Com ele trouxe o projecto “Matière et Mémoire”, que consiste na articulação de uma componente electroacústica gravada, com inclusão da voz de Tomás Freire na leitura de um texto filosófico, e de um solo de clarinete. O lado magnético da intervenção foi assaz interessante, englobando em si aspectos das práticas electrónicas da música contemporânea, da exploratória, do ambientalismo e até, quase, quase, do techno. Já enquanto clarinetista ficaram por perceber os verdadeiros recursos de Lopes, pois este insistiu num registo feito de sobreagudos e dissonâncias, que nunca se alterou apesar de todas as mudanças sugeridas pela gravação. Fiquemos atentos ao que de seguida ele fizer…
Carlos “Zíngaro” / Ulrich Mitzlaff / João Pedro Viegas / Alvaro Rosso
Com disco editado há cerca de um ano pela JACC Records, há muito que se ansiava por assistir novamente a uma performance (têm sido poucas, dadas as vicissitudes passadas por este tipo de música entre nós) deste super-quarteto que aos portugueses Carlos “Zíngaro” e João Pedro Viegas (clarinete baixo) junta o alemão Ulrich Mitzlaff (violoncelo) e o uruguaio Alvaro Rosso (contrabaixo), o único já previamente existente a ser agendado para este festival. Mais uma vez, e até porque a instrumentação assim o determina, as lógicas aplicadas foram as da música de câmara, apenas com a particularidade de esta ser totalmente improvisada. O grupo funciona como um todo e prefere claramente a interacção colectiva, mas cada uma das vozes que o integram teve oportunidade de sobressair. E se “Zíngaro”, Mitzlaff e Viegas estiveram à altura do que deles ouvimos no passado, é importante sublinhar o quão surpreendente cada apresentação pública de Rosso tem sido, com mais esta a deixar-nos rendidos. Som, imaginação, sentido de oportunidade, escuta – todos os ingredientes necessários para uma boa improvisação estão ao alcance deste contrabaixista, que deles fez bom proveito nesta prestação.
Manuel Guimarães / João Camões / José Bruno Parrinha / Miguel Falcão
Se o clarinetista José Bruno Parrinha é conhecido pela extrema focagem do seu muito pessoal estilo, utilizando poucas notas nas suas construções, também sabemos de outros contextos o quanto Manuel Guimarães (que tocou piano, e não a anunciada guitarra) e João Camões (viola) podem ser argumentativos – o que, diga-se de passagem, não tem mal quando a música o exige e assim tem sido nos seus casos. Na estreia absoluta deste quarteto a abordagem foi unanimemente minimalista: também eles e o contrabaixista conimbricense Miguel Falcão foram exemplares na intuída estratégia de redução de materiais. E não só de redução como de repetição, como ficou patente no trabalho de Guimarães, continuamente regressando a motivos antes tocados para que a perspectiva das tramas “fechasse” mais, na prossecução da ideia de que, nestas coisas do improviso, o caminho faz-se caminhando. Foi por uma lenta, demorada, evolução que o grupo passou, apenas mudando de direcção quando as situações se revelavam esgotadas, nunca o fazendo abruptamente. Além de Guimarães, que é – apesar de pouco se falar disso – um dos mais interessantes pianistas do nosso país, também Camões esteve em alto nível. Uma delícia de concerto.
Rádio Diáspora feat. Paulo Curado & João Madeira
O fim da edição de 2016 do Granular Fest fez-se com uma contribuição de S. Paulo, no Brasil. Se alguns dos músicos do núcleo de improvisadores daquela cidade começam por cá a ser conhecidos, nada nos preparara para a superlativa qualidade da proposta trazida pelo trompetista Rómulo Alexis e pelo baterista e electronicista Wagner Ramos, que tiveram como convidados os “nossos” Paulo Curado (flauta) e João Madeira (contrabaixo). Apesar do acrescento destes, percebeu-se desde logo que o duo Rádio Diáspora tem um conceito e uma rodagem solidamente estabelecidos, tornando difícil a entrada nos seus domínios de intervenientes estranhos. Madeira até que conseguiu integrar-se na rítmica intensa imposta por Ramos, mas Curado não encontrou espaço para mais do que umas quantas colorações, fosse porque o imparável Alexis não lho concedeu ou porque não se sentiu à vontade. Inesgotável de ideias e com uma tessitura quente de trompete, Rómulo Alexis mostrou ser um soprador abrasivo e acutilante. E intrigou, sobretudo nos instantes em que aquilo que nos chegava aos ouvidos era um saxofone barítono, e tão só porque substituiu o bocal do instrumento pelo que parecia ser um rolo de papel ou cartão. Para além do normal “set” de bateria, Wagner Ramos utilizou com grande efeito um “kit” digital de percussão e um “sampler”. O final fez-se com o que parecia ser um balafon, confirmando a referenciação africana de todo o jogo de baquetas antes ouvido.