Rui Faustino + Pinkdraft
O mesmo e o diferente
Mais duas noites de improvisação na SMUP, com abordagens muito distintas da mesma. Numa, um solo de bateria que foi mais do que um solo de bateria, na outra um agora quinteto que juntou à sua habitual entrega a timbres e texturas uma utilização de ritmos e frases melódicas. Quem disse que estas eram músicas “difíceis”?
Em duas noites seguidas da programação da SMUP (28 e 29 de Abril), duas formas bem distintas de entender a improvisação nos dias que correm – no primeiro caso, o de Rui Faustino, inserida em parâmetros muito definidos; no segundo, com uns Pinkdraft em formato de quinteto com Henrique Fernandes a acrescentar-se a Ricardo Jacinto, Nuno Torres, Travassos e Nuno Morão, a dirigir tudo o que aconteceu naquele espaço da Parede.
Baterista radicado em Berlim e com um raro historial de aparições públicas no nosso país, o que deu um significado especial a esta sua vinda, Rui Faustino (foto acima) apresentou-se a solo com quatro longas peças meticulosamente estruturadas e em que recorreu a “loops” para ir sobrepondo camadas de materiais. Em cada bloco tocava sobre o que tinha tocado antes, conduzindo sucessivamente os planos rítmicos já estabelecidos para outros desfechos. Se os fraseados se iam repetindo ou introduzindo apenas pequeníssimas variações, as bases e os envolvimentos mudavam, cortando umas secções para as meter noutras e assim criando um muito curioso jogo entre o “mesmo” e o “diferente”, com referência indirecta no minimalismo norte-americano.
O que gravava era reproduzido nas colunas de som do PA para se misturar com o trabalho ao vivo de Faustino, mas se o recurso à electrónica serviu nos primeiros 20 minutos para a definição de níveis acústicos, com os sons da parafernália percussiva inalterados, o músico acabaria mais adiante por tirar outro proveito dos dispositivos de “delay” e “sampling” que tinha à disposição. Fê-lo da forma mais elementar, manipulando velocidades, mas para grande impacto electroacústico. Os resultados eram hipnóticos e de grande interesse, deixando a assistência suspensa de cada movimento.
O olhar ficava tão preso das situações quanto os ouvidos, para perceber como é que o que acontecia sonicamente tinha realização física. Em dado momento, Rui Faustino concentrou-se em utilizar o mesmo ataque de baquetas para fazer vibrar em simultâneo peles e pratos, com tal técnica estabelecendo mais uma obsessiva construção, plena de intrincações mas com um carácter ondulante. Ou seja, o factor performativo era fundamental, envolvendo toda uma coreografia. No fim, todos ficámos cientes de que um solo de bateria pode ser muito mais do que um solo de bateria.
A sessão seguinte entrou ainda mais fundo pelos territórios da electroacústica, e se Jacinto tinha alguns processadores ligados ao seu violoncelo, e Fernandes largou amiúdes vezes o contrabaixo para se aplicar sobre uma série de objectos amplificados, deveu-se tal sobretudo a um particularmente oportuno e criativo Travassos, em agitação constante sobre os seus leitores de bandas magnéticas, muito “circuit bending” e o que ainda de enigmático se encontrava na mesa diante de si, com cabos e mais cabos a esticarem-se até ao chão.
Bem diferente foi o que ouvimos nesta ocasião do único disco editado pelo grupo até à data. Se as estratégias improvisacionais deste continuam a sustentar-se na exploração de timbres e texturas, já não há uma adesão à estética do reducionismo e do “near silence”. E se o projecto se definia no passado pela inquietude e pela pouca economia de sons, ainda que em volume reduzido, neste concerto houve instantes de aproximação ao que habitualmente se designa por noise, como se verificou muito particularmente no “encore”. Pelo meio, foi surgindo outro tipo de recursos, desde “riffs” introduzidos pelo contrabaixista e pelo violoncelista a frases melódicas mais tipicamente jazzísticas por parte do saxofone alto de Torres.
Algo inesperadamente, e tal como na intervenção de Rui Faustino, as abordagens tiveram o seu foco em usos vários da percussão – a de Morão, desta vez acrescentando ao seu “setup” um grosso adufe híper-amplificado e indutor de insuspeitas profundezas, a de Henrique Fernandes quando dedilhava uns espigões metálicos de efeito cortante, e a de Travassos, que em certa altura accionou uma taça tibetana sobre um gravador de cassetes sem tampa, mais parecendo que cortava vidro.
Se a actuação começou tentativamente, com transições situacionais pouco coladas, depressa se vincou um caudal de elementos que, muitas vezes, era impossível de saber de onde (de quem) vinha, ganhando uma consistência e uma coerência notáveis. Se nessa narrativa quase sempre abstracta, mas com figuras a irromperem aqui e ali, umas coisas conduziam a outras, a reiteração de motivos ligava tudo, dava continuidade, formava estruturas, definia temas. O público, pelo que se viu no final, adorou, desmentindo a ideia de que práticas musicais como esta são “difíceis”.