Universal Indians & Joe McPhee
Dose dupla
O grupo europeu que homenageia Albert Ayler e o seu ilustre convidado vieram a Portugal para dois concertos, um na Culturgest, em Lisboa, e o outro na SMUP, na Parede. A jazz.pt foi ouvi-los a ambos e ficou com impressões diferentes (foto acima: Cláudio Rêgo)…
Ouvir jazz num banco (Caixa Geral de Depósitos) não deixa de causar estranheza, pois a música da liberdade e da libertação no epicentro da usura parece um contra senso. Mas a verdade é que a Culturgest é um dos programadores culturais mais interessantes do País e oferece frequentemente acontecimentos arriscados e desafiantes. A exposição “Honey, I Rearranged the Collection” é um bom exemplo do seus interesse e singularidade e o convite a Pedro Costa para programar música fora dos circuitos de pacote é outro.
O ciclo Isto é Jazz? tem apresentado música que questiona as fronteiras do género e propõe audições sem preconceitos e etiquetas. O Pequeno Auditório continua quase cheio, o que também quer dizer que há um público que prefere e aceita o risco em vez do conforto de confirmar o que já sabe.
Os Universal Indians (designação retirada de um dos temas do LP ”Love Cry”, de Albert Ayler) tocaram no dia 9 de Abril com um dos fundadores do free jazz americano ainda vivos, o saxofonista e trompetista Joe McPhee. De Ayler retiram o nome, pois toda a sua alegria, o seu espírito festivo e marchante, se esvaiu num jazz seco e frio. Consigo destacar três momentos excelentes do concerto, o que normalmente prova que não foi muito bom.
Dikeman começou com um solo excelente, mas abusou do histrionismo no saxofone sem ter conseguido elevar a música para uma partilha colectiva. O que muitas vezes é uma explosão gritada da emoção levada ao limite soou a birra e a o saxofonista ficou sozinho a insistir num caminho que parecia mais ensaiado do que vivido. O contrabaixista Jon Rune Strøm foi o músico mais interessante em palco e a passagem para o baixo eléctrico acabou por conseguir unir o grupo e colocar música interessante na sala.
Tollef Østvang é um baterista encartado, mas sem novidade ou expressão particular. Foi bonito na utilização dos pratos e na alteração radical de ambientes que gerou... uma vez. McPhee parecia pouco confortável no grupo e os bons solos cruzados com Dikeman do início do concerto acabaram por desaparecer, limitando-se a fazer bem, a soar bem, a tocar bem.
Neste contexto não podemos falar de um mau concerto, mas também não podemos dizer o oposto. (G.F.)
Parede: fogo
Já algo de muito diferente se passou no dia seguinte na SMUP, o novo espaço da Parede, concelho de Cascais, onde as práticas musicais criativas se estão a concentrar. Os préstimos de Dikeman continuaram, de qualquer modo, a constituir um problema. O seu alinhamento pela estética do grito de Ayler, via Peter Brotzmann, era óbvio, mas faltava-lhe consequência e fundamentação. O expressionismo extremo do saxofonista norte-americano radicado em Amesterdão depressa acabou por se revelar espúrio. Aliás, McPhee foi sempre mais assertivo com bastantes menos pirotecnias no saxofone alto e no trompete de bolso.
A enorme projecção sonora de Dikeman traz consigo um dilema: a respiração. Chegou a ser confrangedor ouvi-lo a sorver o ar entre fraseados – se tal se verifica numa ocasião de especial esforço, o factor dramático sai reforçado, mas se há repetição declara-se uma disfuncionalidade. Ainda assim, no apinhando sótão da Sociedade Musical União Paredense os quatro instrumentistas foram-se colando gradualmente e boa música acabou por acontecer – aquela que justificadamente ganhou o epíteto de “fire music”. Música essencialmente improvisada, em cujo fluxo surgiam temas, refrões ou simples motivos que eram repetidos, desconstruídos ou não, consoante a oportunidade.
A primeira intervenção fez-se com Strom em baixo eléctrico. Pode o projecto Universal Indians ter como pressuposto uma revisão das coordenadas do free jazz original, mas a cama rítmica e harmónica preparada pelo músico para os seus parceiros era de outra proveniência: vinha do rock e tinha até algo do punk, com o seu par de acordes, o seu balanço, o seu som sujo e electrificado.
Logo desde então se percebeu a postura do lendário convidado dos “índios” da Noruega e da Holanda: McPhee fez questão de se colocar em segundo plano relativamente ao trio. Os seus solos eram mais curtos e ocasiões havia em que se limitou a acrescentar alguns apontamentos, diga-se que com um enorme sentido de oportunidade. Uma opção compreensível, dadas a sua posição no colectivo e, inclusive, a idade que tem (76 anos), mas foram várias as ocasiões em que isso quase nos frustrou. Quando se ouve algo de tão especial, quer-se mais.
Talvez pelo informalismo da actuação ou pelo intimismo do espaço, tudo foi crescendo e muito gratificantes resultaram os cruzamentos dos sopros. Nas alturas em que a geral abstracção dava lugar a uma pulsação mais definida (clara preferência de Østvang, um assumidamente convencional baterista de jazz) e a situações melódicas – estas mais do que uma vez nos lembrando Albert Ayler – era como se poisássemos no chão depois de termos sido levados pelo vento. (R.E.P.)