Festa do Jazz do S. Luiz
Palmas e foguetes
A grande festa do jazz português (e não só) teve na sua 13ª edição concertos mais ou menos bem-sucedidos, mas todos estiveram muito acima do vermelho. Uma razão mais para se celebrar o que aconteceu no Chiado, em Lisboa: a música que por cá se faz está de óptima saúde (em cima: Ensemble Super Moderne).
Quem for supersticioso dirá que fazer a 13ª edição de um festival é um risco. Por essas e por outras é que alguns hotéis e edifícios empresariais passam directamente do 12º para o 14º piso. O certo, porém, é que no seu décimo terceiro ano de existência a Festa do Jazz do S. Luiz teve uma das suas melhores – senão mesmo a melhor – edições de sempre, com um programa cheio de concertos a não perder.
Na maior parte dos casos, tratava-se de actuações de agrupamentos e músicos que, do ano passado até este primeiro trimestre de 2015, tinham lançado discos de grande relevância, daqueles que merecem quatro e cinco estrelas porque o que têm dentro roça o brilhantismo e comprovam que o jazz nacional está ao nível do que se pratica noutros países. Os nomes sucediam-se no cartaz: Gileno Santana, Ensemble Super Moderne, João Guimarães Octeto, Deux Maisons, Desidério Lázaro…
Talvez por isso, a 13ª Festa do Jazz foi ainda mais festiva do que o habitual, e inclusive com um acréscimo de público. E se a última colheita discográfica do jazz” made in” Portugal foi bastante proveitosa, mais especial ainda era ouvir ao vivo a música que se conhecia em CD (no jazz, o que se toca no palco importa mais do que aquilo que se escuta com a aparelhagem de casa), e fazê-lo juntamente com outras propostas que poderão, e deverão até, ficar documentadas. Casos do trio de Demian Cabaud com Leo Genovese e Jeff Williams e da parceria de André Matos e Tony Malaby, que clamam por registos urgentes, tão preciosos são…
Foram 14 concertos em três dias, com dois na sexta 27 de Março, seis no sábado 28 e outros seis no domingo 29, em jeito de maratona. O extraordinário desta Festa é que não houve uma única sessão que não tivesse bons argumentos. Cada um dos muitos que foram ao Chiado gostou mais de umas coisas do que de outras, como é vulgar acontecer num festival, mas saiu com certeza do Teatro Municipal de S. Luiz com a percepção de que estava ali a montra do melhor que se faz neste género musical.
Segue-se, pois, a impressão deixada pelas prestações que nos entusiasmaram, pelas que muito nos deram a gostar e ainda pelas que resultaram simplesmente agradáveis. É um luxo, poder dividir assim a qualidade em graus, mas está aí precisamente a magia da Festa do Jazz. Quem está em cena dá tudo o que tem e mais ainda. Cada momento é um degrau que nos convida a subir, e se acontece descermos dois, logo quatro degraus surgem para chegar ao telhado.
Uau!
O concerto que mais encheu as medidas foi, indubitavelmente, o do Ensemble Super Moderne. Ficou comprovado o sururu levantado pelo homónimo disco de estreia deste projecto do Porto, com uma música que deve, sobretudo, à escrita intrincada dos seus autores. Destacaram-se os temas de José Pedro Coelho e Carlos Azevedo, com o seu jazz a deglutir elementos do rock e da música contemporânea, numa perspectiva que aqui na jazz.pt já referimos como “meta-moderna”. Ou super, como o próprio octeto reivindica, em termos de entrega, criatividade e capacidade técnica, que não apenas no do paradigma cultural abraçado. A ênfase foi para o colectivo, e se o factor improvisação esteve mais confinado nos solos, a riqueza das composições chegou para levantar o público das cadeiras.
Mas porque não é a quantidade de músicos a actuar que dita o impacto de uma proposta musical, foi sozinha com o seu piano que Kaja Draksler conquistou a audiência. Mergulhou na tradição do seu país, a Eslovénia, entrou pelo domínio do experimentalismo, manipulando o interior do instrumento ou fazendo-o soar como sinos de igreja (!) e foi até às raízes do pianismo jazz, o do stride, numa homenagem a Jaki Byard e James P. Johnson. Foi de um lirismo poético comovente e foi também intempestiva, envolvendo-nos em torrentes de som. Draksler faz já parte da cena nacional, com uma edição discográfica a solo no nosso país e uma colaboração com Susana Santos Silva, e daí a sua presença na «festa do jazz português».
Deu igualmente que falar a intervenção de Gileno Santana. Apresentou o seu álbum “Metamorphosis”, mas com outra formação que sublinhou ainda mais o factor fusion deste seu investimento. O grupo incluiu o guitarrista Peixe, munido de uma seis-cordas eléctrica de que fez fantástico uso, e um baterista que é uma autêntica máquina de ritmos e revelou um gosto especial pelo drum ‘n’ bass, Hugo Denin. Já sem pronúncia brasileira (vive no Porto e é membro da Orquestra Jazz de Matosinhos), o líder trompetista gracejou sobre as suas influências milesianas com o tema “Eu Não Sou o Miles”. Começou por aí, mas depressa se percebeu que tem igualmente outras coordenadas, num paisagismo electro de enorme elegância.
Também os Deux Maisons nos levaram para o céu, assim chamados porque o quarteto integra dois jovens músicos franceses que estão a fazer furor no seu país, os irmãos Théo e Valentin Ceccaldi, e dois portugueses, Luís Vicente e Marco Franco. Atiraram-se a improvisações integrais que, aqui e ali, contrastaram a abstracção com elementos figurativos – Théo, o violinista, introduziu, desconstruiu e prolongou até ao limite das possibilidades uma melodia folclórica que fez com que a música crescesse ainda mais. O concerto foi um delírio de energia controlada, com os picos de intensidade nunca obscurecendo os muitos detalhes. Valentin ora tocou o violoncelo com arco ora em pizzicato, como se fosse um contrabaixo, Vicente foi um jorro de ideias no trompete e Franco fez na bateria com que o coração deste sensual ataque aos ouvidos pulsasse vibrantemente.
Estratosférica foi igualmente a apresentação que Desidério Lázaro fez de “Subtractive Colors”, com animação vídeo de Camila Reis projectada no fundo do palco. Com um grupo de constituição invulgar (três palhetas, dois contrabaixos, bateria), afirmou-se definitivamente como um compositor de mão-cheia para além do excelente saxofonista que já sabíamos que era. Para surpresa de quem ouviu o disco e depois o concerto, as suas pautas ganharam sofisticação clássica sem menosprezar a eficácia de uma melodia ou de uma construção harmónica de índole mais popular e acessível. Vertente esta que no final ficou em primeiro plano, com a interpretação do tema-título do CD em formato soul-rap e adição das vozes de Carolina Varela e João Neves. O clarinetista Paulo Gaspar e o contrabaixista Mário Franco estiveram em especial evidência. Quando as imagens que acompanhavam um tema dedicado por Lázaro àqueles que morreram mostraram o falecido Jorge Reis, uma lágrima formou-se no canto do olho de muita gente.
Muito bem
Quem conhece o saxofonista norte-americano Tony Malaby sabe o quanto ele consegue ser visceral e mercuriano, mas a sua associação, como convidado, com o André Matos Trio seguiu premissas bem diferentes e mostraram no S. Luiz um outro lado da sua mestria. A música tocada pelo guitarrista com Demian Cabaud e André Sousa Machado vogou pelos tempos lentos e médios, com uma doçura que Malaby apanhou e realçou, ao mesmo tempo levando o que poderia resultar algo mole para desfechos de grande beleza. Sempre com poucas notas e muita emoção. O trompetista Gonçalo Marques deu um pequeno contributo numa das peças e voltou, no fim, a juntar-se-lhes, bem como a Leo Genovese, que começou a tocar clarinete na última fila da plateia e subiu às tábuas para um sensacional “encore” com o grupo. Não se percebeu se a coisa estava combinada ou foi espontânea, mas ilustrou o que o próprio André Matos referiu como o «espírito do S. Luiz».
O mesmo Genovese integrou, como pianista, o Demian Cabaud Trio, formado pelo contrabaixista argentino radicado no Porto com o músico espanhol e o baterista americano Jeff Williams, habitual parceiro de Joe Lovano e David Liebman. Dentro da tradição do trio de piano jazz, mas com uma abordagem que podemos apontar como cubista, o que se ouviu foi de um requinte bem especial. Os solos de Cabaud foram uma delícia, o jogo de pratos de Williams, à maneira de comentário, tocou fundo, mas foi Leo Genovese quem conquistou a assistência com os seus fraseados excêntricos e quebrados. A sua imagem (grandes barbas, longo cabelo apanhado no topo da cabeça) ajudou, é claro. As peças executadas tiveram inspiração no folclore da Argentina, o que também contribuiu para o carácter diferenciador deste novo projecto de que se espera a continuidade.
Muitíssimo boa foi ainda a recapitulação feita pelo João Guimarães Octeto de “Zero”, um dos melhores títulos do ano que passou. Da gravação do CD até ao concerto na Festa do Jazz a fórmula sofreu algumas mutações: soou agora mais negra e densa. O seu centro de gravidade baixou e as conotações com as “free forms” do primeiro período eléctrico de Miles Davis dissiparam-se. A base com duas guitarras, baixo e bateria ficou mais pesada, e mais espessa se tornou a frente de sopros de Guimarães, Mário Santos, Nico Tricot e Susana Santos Silva. Mais uma vez (em comparação com o Ensemble Super Moderne) imperaram a escrita e a interacção de grupo, e se improvisações individuais houve, estas não soltaram a performance geral do seu enquadramento. Não que as tramas o pedissem, mas alturas houve em que algum alívio seria bem-vindo. Tratava-se, no entanto, de uma música imersiva, difícil de fruir mas exigindo que nos rendêssemos às suas coordenadas. Nós rendemo-nos, e valeu a pena…
Desde o duo com Aki Takase que Maria João não tinha uma empreitada tão gratificante quanto a dos seus Ogre. Na Festa ficou patente que já não se trata apenas da junção dos vocalismos da cantora com sínteses electrónicas e ritmos derivados das músicas de dança nascidas do funk. Alguns anos passaram desde o arranque do projecto e este é um todo solidificado entre “groove” e malabarismos glotais. Se, pelo ouvido, João Farinha e André Nascimento continuam a ser os pilares de sustentação do grupo, o pianista Júlio Resende está cada vez mais presente na mistura. Com uma Maria João sempre irrequieta, apesar do ferimento numa perna, ao interesse propriamente musical somou-se um especial talento da protagonista desta sessão: a capacidade comunicativa. Os esforços teatralizados para não dizer / cantar a palavra “motherfucker” fizeram gargalhar a sala.
Neste lote de bons momentos cabe também o PianoBatuque de Pablo Lapidusas e Joel Silva. Piano e bateria somente, ou seja, um instrumentário mais próprio do free jazz do que do tipo de música em causa. Os fundamentos estiveram sempre na música brasileira, a da naturalidade do pianista que há apenas dois anos e meio vive em Lisboa. E tanto a da MPB como a tradicional, a exemplo do final sertanejo em que Silva trocou as baquetas pelo teclado e Lapidusas fez as vezes de uma sanfona com uma melódica. O formato sem contrabaixo libertou as estruturas e as improvisações e incentivou as faculdades imaginativas dos dois músicos. Ficámos cientes da enorme bagagem de recursos de Lapidusas e foi uma revelação ver Silva a desenvolver um trabalho de “bricolage” sonoro, largando a pulsação para se entregar à elaboração de texturas.
E ainda…
Em contexto de intercâmbio com o jazz europeu, a Festa do Jazz incluiu um inédito “gig” só com intervenientes estrangeiros, o da Lina Nyberg Band. Esteve bem, a dita, mas abaixo das expectativas. Nas alturas em que se esperava que a cantora e os seus músicos levantassem voo, vinha de novo o refrão. Fomos compensados pelos magníficos solos de guitarra de David Stackenas, figura exponencial da música livremente improvisada que, como se verificou, também está à vontade em situações mais “mainstream”.
Com o envolvimento de músicos de nomeada da cena nacional, como Ricardo Toscano, Paulo Gaspar, Lars Arens, Ruben da Luz, Johannes Krieger, Gonçalo Marques, Tomás Pimentel, Luís Cunha, Óscar da Graça ou António Quintino, a Orquestra de Jazz do Hot Clube viveu uma noite especial sob a direcção do germânico Rainer Tempel. O repertório deste era variado, entre um bigbandismo mais formal e próximo das premissas do swing, passagens aparentadas com o cool californiano e peças mais abertas e actuais em termos harmónicos. Foi um desfilar de belíssimos solos, mas há que distinguir um: o de Mateja Dolsak em saxofone tenor, única mulher na orquestra. Focado, retoricamente simples e bem urdido, deixou nos presentes a vontade de seguir as futuras movimentações desta eslovena a residir em Portugal.
André Santos levou “Ponto de Partida” ao Chiado, projecto com uma escrita funcional que deixava para a sua guitarra e para o saxofone alto de Ricardo Toscano a tarefa de convencer os ouvidos. E convenceu. A abordagem do madeirense teve algo de “folky”, ou pelo menos de um “camping rock” descontraído, parecendo que estávamos na praia, à volta de uma fogueira. Quanto a Toscano, ficaram de novo provados os motivos porque é o seu nome cada vez mais falado. Solou com alma, com vocabulário e com técnica, agigantando o que era elementar e multiplicando os efeitos obtidos muito para lá do que a própria música implicava. É, sem dúvida, um “puto maravilha”, como alguém comentava no “foyer”.
Por fim, refira-se o cançonetismo jazz da colaboração de Afonso Pais e Rita Maria. Com forte influência dos cantautores do Brasil, interpretaram um punhado de temas que eram tão leves e frescos quanto exímia foi a execução. Pais é um dos nossos guitarristas maiores, com as suas malhas cerradas sempre a surpreenderem, e a banda de que se rodeou estava-lhe à altura, com o espanhol Albert Sanz, António Quintino e Luís Candeias. A fronteira com a música ligeira estava ali ao lado, aproximando-se perigosamente, mas o “scat” de Rita Maria deu mais chão ao caminho percorrido.