Jazz ao Centro
Coimbra em grande
Houve excelente música à beira do Mondego entre 29 de Maio e 1 de Junho, com uns esmagadores Matthew Shipp, Joachim Kuhn e Joelle Léandre. Eis aqui as notas de audição de um festival que se tornou incontornável…
Quatro dias de concertos, num total de oito, em seis diferentes locais da cidade de Coimbra. Assim foi a 12ª edição do Jazz ao Centro – Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra, com dois dos maiores pianistas do planeta, Matthew Shipp e Joachim Kuhn, e a grande Joelle Léandre a juntar-se aos novos valores do Théo Ceccaldi Trio. E com o dinâmico Chibanga Groove a saber, e de que maneira, acompanhar o ziguezagueante Braíma (ou Ibrahima, como por vezes é designado) Galissa, com o Lisboa String Trio, célula de investigação de um jazz efectivamente “português”, e com a parceria de Luís Antero e João Filipe Pais tendo a Cidade Universitária como protagonista.
Feitas as contas finais, uma evidência: tratou-se de umas das mais equilibradas, em termos de qualidade, e bem-sucedidas, no que respeita á numerosa adesão do público, edições do evento organizado anualmente pelo Jazz ao Centro Clube.
Luís Antero / João Pais Filipe
Em mais do que uma ocasião, a música apresentada por Luís Antero e João Pais Filipe fez lembrar os retratos musicais da realidade “tirados” por um dos mais fascinantes compositores do século XX, Luc Ferrari. Também ele fazia recolhas auditivas em meios humanamente habitados e utilizava nas suas peças as vozes e as palavras da gente que ia encontrando, numa espécie de dramaturgia espontânea. Luís Antero andou pelo centro histórico de Coimbra e gravou sons que podem estar em vias de desaparecimento, conforme se vão extinguindo determinados tipos de comércio tradicional e determinados misteres. Depois, convidou o baterista e percussionista João Pais Filipe para interagir com esses materiais e decidiu-se a acrescentar as suas próprias manipulações em guitarra preparada.
A não ser os registos sonoros da velha Coimbra, que têm carácter documental, tudo o resto que se ouviu no concerto de abertura do Jazz ao Centro, no Centro Cultural D. Dinis, foi realizado por meio de processos e técnicas de improvisação – algo que não encontramos em Ferrari. Aquilo a que os anglo-saxónicos chamam “field recordings” não foi utilizado de forma inerte: Antero misturou e manipulou as suas gravações em tempo real no computador. Com um “set” de bateria e um conjunto de gongos rectangulares de sua própria construção, Filipe fez mais do que acrescentar música percussiva às imagens sónicas da cidade – transformou-as em música, aspectos de uma organização de elementos musicais. Curiosamente, o trabalho de Luís Antero com a guitarra disposta na horizontal, e “artilhada” com os mais diversos objectos, serviu para acentuar o carácter acidental das captações de base, como que a devolver estas à quase aleatoriedade do quotidiano. Ou seja, o concerto compôs e decompôs, o que foi deveras interessante, mesmo quando transpareceu alguma falta de coesão. (R.E.P.)
Chibanga Groove & Braíma Galissa
Em duas sessões no Salão Brazil que foram gravadas para edição futura de um disco pela JACC Records, o quarteto Chibanga Groove revelou-se bem mais do que uma decantação da Tora Tora Big Band. Se bem que as suas coordenadas sejam as mesmas que as daquela outra formação mais alargada – uma junção do jazz com o funk e os ritmos latinos e africanos –, o grupo do alemão Johannes Krieger com o inglês Dan Hewson, o italiano Francesco Valente e o português João Rijo, todos residentes em Lisboa, tem como propósito ir mais fundo no tratamento das formas. O que quer dizer que, muitas das vezes, interrompe a festa para se deleitar com a beleza de uma harmonia ou com o poder sugestivo de uma linha melódica, chegando mesmo ao ponto de a construir para poder observá-la demoradamente por vários prismas. Quando o convidado da banda é alguém como o mestre mandinga Braíma Galissa, é tanto a dança como a contemplação que são convocados, como aconteceu em Coimbra.
O repertório dos dois concertos foi constituído por peças de Krieger e de Galissa, além de uma fabulosa interpretação de um tema de Don Cherry. Passou-se pela Andaluzia e por Marrocos e algumas construções poderiam residir muito bem no catálogo da ECM (caso de um longo e inspirado solo de abertura de Hewson ao piano), mas os Chibanga Groove na companhia do tocador de kora da Guiné-Bissau estiveram todos focados em África. Galissa é um virtuoso com um sentido incrível do espectáculo. Sempre imprevisível e sempre retirando os restantes músicos das suas respectivas zonas de conforto, foi crescendo em cada uma das actuações até as dominar por completo. No início deixava o quarteto instalar-se, para na parte final ser a referência e o guia de cada situação, interpelando directamente cada um dos Chibangas. O resultado só podia ser um: público de pé a aplaudir efusivamente. (R.E.P.)
Matthew Shipp
O átrio do Museu Nacional Machado de Castro ficou à cunha para ouvir e ver o solo de Matthew Ship. Foi um concerto duro, sem concessões e em “stream of consciousness”. O pianista só parou ao fim de uma hora, com motivos a nascerem de motivos praticamente sem transição, cobrindo todo o património do piano jazz e incorporando outras contribuições, designadamente as da clássica, desde o contraponto de Bach até ao dodecafonismo dos serialistas. Foi de Thelonious Monk a Bill Evans e deste a Cecil Taylor e mais além, numa formulação metamórfica que visitou composições próprias e de terceiros, transformando-as por completo e subjugando-as ao imperativo da improvisação.
Dissonâncias, abordagens pronunciadamente rítmicas, fragmentos de melodias e uma exploração harmónica de incrível complexidade definiram uma performance que teve tanto de cerebral como de físico e deixou a assistência sem fôlego. O que não acontecia por sobreposição de camadas ocorreu por contradição, numa lógica paradoxal que só não surpreendia porque os presentes perceberam de imediato que nunca iriam poder antecipar o momento seguinte. Shipp raramente vai para onde julgamos que a música o conduz – parece até fazer questão de se armadilhar a cada momento, desconstruindo o que mal acabara de montar e inclusive não se coibindo de destruir o que tão laboriosamente estabelecera. Já não se trata da pós-moderna estratégia da ironia, mas de refrescante cinismo. Foi magistral, alucinante e belo como um relógio a derreter numa pintura de Dalí. (R.E.P.)
Théo Ceccaldi Trio & Joelle Léandre
Quando se coloca uma formação de cordas num espaço como o do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha é de esperar uma intervenção de câmara, mesmo que com as cores do jazz e com metodologias de improvisação. Com o Théo Ceccaldi Trio, e ainda para mais completado pela lendária contrabaixista Joelle Léandre, as coisas não são assim tão lineares. Sim, houve passagens de clara referenciação clássica – aliás, mais clássica do que propriamente jazzística – e sim, os irmãos Théo e Valentin Ceccaldi, Guillaume Aknine e Léandre não deixaram de dialogar com as andorinhas que esvoaçavam pelas ruínas deste monumento conimbricense que data do século XIV, mas o que ali aconteceu não cabe nesse figurino.
Imaginem Aknine a contrapor uma guitarra eléctrica em distorção à tríade violino-violoncelo-contrabaixo. Imaginem o líder violinista a gritar sobre um cerrado “drone” electroacústico. E imaginem uma teatral Joelle Léandre a vocalizar, entre o declamatório e o operático, um poema em Francês. Foi isso que aconteceu, trocando as voltas aos ímpetos classificatórios. O que fizeram, o grupo-charneira da nova geração de improvisadores do Hexágono e a sua ex-professora, entrou nos domínios do experimentalismo puro, mas o que terá intrigado os menos dados dos presentes às bizarrices da vanguarda era o estarem a gostar. Foi uma celebração da vida, da liberdade, do passado, do pôr-do-sol, das aves que ali teve lugar. Extravagante decerto, mas de uma seriedade musical a toda a prova, por parte de quatro instrumentistas / compositores do instante que sabem o que fazem e, acima de tudo, que sabem comunicar com uma audiência. Simplesmente magnífico. (R.E.P.)
Joachim Kuhn
Figura histórica do jazz europeu nascida com o bebop (enquanto acompanhante de grandes músicos americanos de visita), precursor do free jazz (com, entre outros, Michel Portal), da fusão jazz-rock (com Jean-Luc Ponty e Michael Brecker) e do world jazz (com Rabih Abou-Khalil, por exemplo) no Velho Continente, Joachim Kuhn enfrentou o público do Teatro Académico Gil Vicente a sós no palco. Não tocou Bach, contrariamente ao que se esperava e que vem sendo habitual na digressão comemorativa dos seus 70 anos de idade, mas incidiu particularmente a atenção em Ornette Coleman, referência pessoal e seu parceiro num disco que ficou para os anais.
Alagado em suor e com uma entrega à música que faria inveja a pianistas mais jovens, Kuhn fez jus à sua fama: foi ora incisivo, violento mesmo, no ataque ao teclado, ora lírico e fixado nos pequenos detalhes, por vezes à distância de uns minutos. Com uma linguagem muito mais acessível do que a de Matthew Shipp, deu também ele uma lição de piano que nunca poderá esquecer quem à mesma assistiu. Vê-lo enganava os ouvidos: quando parecia que ia ter a mão pesada, soltavam-se pelo ar notas tão leves que podíamos seguir o seu voo, e tão emotivas, tão apaixonadas, que esquecíamos que a música é, primeiro que tudo, matemática. Um grande senhor com ainda muito para dar. (R.E.P.)
Stefan Pasborg Free Moby Dick
Já passava muito da meia-noite quando os Free Moby Dick de Stefan Pasborg iniciaram a sua participação nos Encontros de Coimbra e o seu cansaço foi audível. O concerto resultou algo mole, coisa estranha quando, afinal, o repertório da banda consiste na interpretação, ou melhor, na conversão, de temas históricos do rock, indo de Elvis Presley aos White Stripes, com passagens por Rolling Stones e Led Zeppelin. Este crítico foi ouvi-los à abertura da Combat Jazz Series na Parede, dois dias depois, para poder confirmar se se tratou apenas de uma prestação menos feliz ou se era um problema estrutural. Na linha de Cascais estiveram tão bem quanto é possível que a fórmula proporcione, e que é muito mais do que o jazz-rock tentou nos idos anos 1970.
O Salão Brazil estava apinhado e o calor era imenso. O registo lânguido de “Love Me Tender” no começo acabou por criar raízes e até conseguiu puxar para baixo o originalmente irrequieto “Paint it Black”. Ainda assim, Liudas Mockunas no saxofone tenor e Mikko Innanen no barítono fizeram solos de se lhes tirar o chapéu, indo para muito, muito longe das cifras impostas pelas canções. Dois tipos de situação se iam cruzando: ou os “riffs” surgiam pelo meio de materiais abstractos, totalmente improvisados, como um factor de contraste, ou eram as melodias e os ritmos por todos reconhecíveis que se davam a desconstruir até à dissipação. Foi um bom concerto, mas como diz o povo, o bom é inimigo do óptimo e este só mais tarde, terminado o Jazz ao Centro, foi atingido. Haviam de ter assistido aos possessos solos baterísticos de Pasborg na Sociedade Musical União Paredense… (R.E.P.)
Lisboa String Trio
A Casa Museu Bissaya Barreto acolheu a actuação do Lisboa String Trio, grupo que reúne Carlos Barretto (contrabaixo), José Peixoto (guitarra) e Bernardo Couto (guitarra portuguesa). A revelou-se pequena para a afluência de público e as cadeiras não foram suficientes para acolher toda a gente – houve quem ficasse de pé ou se sentasse no chão. O trio aproveitou a ocasião para a apresentação do seu disco “Matéria”, acabado de editar. A proposta resulta de uma confluência de música portuguesa e jazz com ecos do Mediterrâneo – eixos que, aliás, já povoam outros trabalhos dos músicos aqui envolvidos, especialmente o El Fad de Peixoto e o duo de Barretto com António Eustáquio. Couto acrescenta uma óbvia matriz fado, à qual é impossível escapar. Trabalhando exclusivamente temas originais, o trio parte de melodias estáveis, recorrentes, sobre as quais as cordas se vão entrelaçando. A união das cordas é trabalhada de forma dinâmica, e estas poucas vezes se vão sobrepondo. Funcionam, sobretudo, de forma complementar.
Altamente estruturada, esta música abre espaços para a improvisação, deixando o caminho aberto para a maginação dos solistas. A intensidade sónica da guitarra portuguesa destacou-se, mas o dedilhar de Peixoto equilibrou o barco e a gravidade maleável do contrabaixo acrescentou personalidade ao grupo - um dos momentos mais especiais do concerto resultou mesmo de um solo de Barretto. O festival de jazz de Coimbra encerrou com uma actuação que, evocando o jazz mas ultrapassando as suas fronteiras, acabou muito aplaudido. (N.C.)