Andam Faunos pelos Bosques
À sombra de Aquilino
Durante três dias, conjugou-se a improvisação com vários idiomas musicais num festival que homenageou Aquilino Ribeiro, adoptando-lhe um dos seus títulos maiores, e também Jorge Lima Barreto, o musicólogo que cunhou o termo “jazz-off”. Balanço muito positivo (foto acima: José Menezes e Nuno Morão)…
No romance “Andam Faunos pelos Bosques”, Aquilino Ribeiro coloca face a face dois entendimentos do Desconhecido, o católico e o pagão, com ambos comprometendo a visão do que é belo e inefável. O escritor republicano e anarquista conhecia bem os dois lados da questão: frequentara o seminário, mas abandonou os estudos por falta de vocação para ser padre e, em adulto, interessado pelos mistérios do Oculto, ingressou na Maçonaria.
Um ano depois do ciclo Quando os Lobos Uivam, outro título da sua obra literária, a Fata Morgana Produções (Monsieur Trinité, Miguel Sá, Pedro Alçada) procurou, em homenagem a Aquilino, relacionar a prática da improvisação musical com os idiomas que, de alguma forma, a integram: o jazz, o rock, a electrónica, tanto a experimental como a das franjas da “club music”, e, como não podia deixar de ser, a própria música improvisada, que pretendendo-se «não-idiomática», como dela dizia Derek Bailey, se transformou em mais uma linguagem estética. De passagem, a iniciativa tributou outra figura da cultura portuguesa recentemente desaparecida, Jorge Lima Barreto, apresentando Andam Faunos pelos Bosques como uma «mostra de jazz-off». Jazz-off, termo de Barreto que deu nome a um dos seus mais importantes livros.
Num total de nove concertos e alguns DJ e “live sets”, o evento ocupou dois espaços contíguos do Bairro Alto, o Bar O Século e o antigo restaurante Consenso, no fim-de-semana de 20 a 22 de Março. A frequência de público variou, desde o esparso até a uma surpreendente enchente tendo em conta os dias que correm, consoante as horas e os nomes em presença.
Capítulo 1
As honras de abertura couberam a um pioneiro da improvisação no nosso país, e também um dos seus nomes maiores a nível mundial, Carlos “Zíngaro”. Foi um solo cheio de surpresas, pois o violinista fez coisas que não é habitual ouvirmos nele. Algumas passagens pareceram evocativas da música celta e durante uma boa parte da sua actuação construiu intrigantes jogos em que um acentuado melodismo, por vezes de cunho romântico e “folky”, quando não mesmo clássico, era constantemente pulverizado e destruído. A apresentação chegou a altos de pura beleza sonora, sem por isso deixar de incluir elementos de ironia e até de sarcasmo. Uma hora de antologia, para não esquecer.
Seguiu-se o Sweet Violence Trio de Vítor Rua com Luís San Payo na bateria e Miguel Sá na electrónica. Com a sua guitarra eléctrica de oito cordas e um largo recurso a “loops” e pedais de efeitos, Rua apresentou temas de sua autoria em que o rock e até o noise conviveram com o reggae e o minimalismo, neste último caso recordando os primórdios do duo que manteve com Jorge Lima Barreto, Telectu. O concerto começou da melhor maneira (como ficou, de resto, patente nos gritos de aprovação da assistência), revelando um particular entrosamento do guitarrista e do baterista, mas foi gradualmente perdendo interesse. Na ordem proporcionalmente inversa aos préstimos de Sá: se este começou timidamente, foi crescendo ao longo da performance e deveu-se sobretudo a ele o registo improvisacional que era convocado pelo ciclo. O melhor aconteceu quando, numa peça de grande saturação sónica, Rua acrescentou um pequeno mas fundamental pormenor: o “chorus” de “Caravan”, composição de Juan Tijol celebrizada pela orquestra de Duke Ellington.
Entrou, depois, o Drone Collective, associando o contrabaixista Bernardo Álvares e o electronicista Mestre André ao Peter Brotzmann português, Paulo Alexandre Jorge. Àlvares e André teceram as bases de sustentação para as derivas de Alexandre no saxofone alto: um bordão denso e de grande intensidade, tocado com arco no caso do primeiro e com o processamento de gravações em cassete no do segundo. Algo que lembrava a organicidade dos “drones” de La Monte Young ou o que Stefano Scodanibbio fez com Terry Riley. Sobre esta base, o saxofonista do Porto foi, regra geral, mais comedido do que lhe é costume, se bem que com os mesmos recursos imaginativos. Pecou, no entanto, por ter tocado demais, sem recorrer a espaços e sem saber retirar-se quando convinha para que as “falas” seguintes ganhassem maior importância.
Capítulo 2
O segundo dia do Andam Faunos pelos Bosques arrancou com um duo entre um dos nossos melhores saxofonistas de jazz, José Menezes, e um multifacetado músico (percussionista em combinações várias nos domínios da música improvisada, “laptoper” em projectos pessoais de experimentação electroacústica e intérprete de música erudita em instrumentos de plástico com o JER Ensemble), Nuno Morão, que muito raramente vemos atrás de uma bateria. O inédito encontro resultou numa das mais gratificantes sessões do festival. Tal como lhe é característico, Menezes ignorou as divisões entre “mainstream” e vanguarda, ora tocando o tenor e o alto em linha com a tradição do jazz, ora avançando resolutamente por situações mais abertas, sempre em contexto de improvisação integral. Quanto a Morão, trocou as suas normais abordagens texturais pelo funcionalismo típico de um baterista, revelando competência, capacidade interactiva e argumentos próprios.
A prestação seguinte esteve algo deslocada numa mostra de jazz-off, por mais “off” que a situemos. Fernando Fadigas em electrónica, Pedro Januário em guitarra eléctrica e Daniel Antunes Pinheiro em guitarra portuguesa e electrónica assinaram um momento que esteve entre o pós-rock e o chill out. Houve situações curiosas, mas se a introdução do cordofone nacional pretendeu adicionar um factor de portugalidade, ou de “estranheza” numa música sem fundamentos etno, essa intenção não ficou bem resolvida, pois a dita guitarra portuguesa nunca foi explorada enquanto tal.
O concerto do Rodrigo Amado Motion Trio foi arrasador, e tanto quando o saxofonista (na altura com um alto) impôs um andamento mais lento, todo ele emoldurado no pós-bop, como nas alturas de maior agressividade e energia conotadas com um free musculado. O trabalho de Amado foi magnífico e Miguel Mira, no violoncelo afinado como um contrabaixo, esteve igual a si próprio, fornecendo o esqueleto de todas as construções. Já Gabriel Ferrandini revelou-se excessivo, descuidando das dinâmicas e cortando a direito, quando se sabe que, na música, o caminho ideal de A a B não é uma linha recta. Bateu demais e produziu mais sons do que os necessários e convenientes. Quando a música pedia outro tipo de investimentos, e designadamente uma edificação rítmica mais objectiva, Ferrandini recusou-se sistematicamente a sugerir um “groove” ou um vestígio que fosse de pulsação. Tivesse ele sido mais maleável e este “gig” ficaria para a história.
Capítulo 3
A última série de performances do ciclo foi iniciada com o projecto Sirius, juntando o jovem trompetista e manipulador de dispositivos electrónicos Yaw Tembe e o percussionista veterano Monsieur Trinité. O músico swazi está a tornar-se num caso muito sério da cena lusa e mais uma vez tal ficou confirmado. A sua sensibilidade e a sua inteligência construtivas, entendendo a improvisação como um processo de composição, revelaram-se da melhor maneira. Os seus recursos trompetísticos são variados, entre os convencionais e os extensivos, e também assim aconteceu com a maneira como utilizou o sampler. Estavam lá os referentes africanos, o jazz por via de um Don Cherry e a influência da “kosmische musik”. Trinité foi tão complementar e oportuno quanto há muito nos habituou, desta vez trocando o seu “set” vertical de címbalos de vários tamanhos por uma mesa cheia de pequenos objectos.
O trio de Jari Marjamaki, Pedro Alçada e Paulo Raposo tornou-se num duo com a ausência do último. Marjamaki estabeleceu as bases de lento desenvolvimento de uma electrónica entre o ambiental e o noise, incorporando ciclicamente novos materiais, e Alçada interveio nessa massa sonora ora com a guitarra, ora com um saxofone alto. Foi na seis-cordas que mais se concentrou, num dedilhar que muitas vezes sugeriu as malhas de um Derek Bailey de inspiração rock. A não ser por uns minutos de perda de direcção, o concerto foi um bom exemplo de entrega e entrosamento, duas das mais importantes condições colocadas pela improvisação.
O fecho deu-se com outra grande figura da música criativa em Portugal, Sei Miguel, acompanhado pela sua Unit Core. O trompetista estreou na ocasião a peça “Vilmar e o Trono Caiçará”, resultado das suas memórias brasileiras, e daí o uso exclusivo, por César Burago, de um pequeno pandeiro. Minimal, crua mesmo, nos seus elementos, e com uma força introspectiva que logo prendeu a atenção dos presentes, suspendendo a realidade exterior, a obra em quatro partes de um jazz que podemos adjectivar como cageano passou por uma deliciosa combinação harmónica de Miguel com o trombone alto de Fala Mariam. O Andam Faunos pelos Bosques não poderia ter terminado mais agradavelmente.
Balanço positivo, portanto, para um festival que, na sua edição de 2015, terá decerto como designação outro título de Aquilino Ribeiro. Via Sinuosa? Jardim das Tormentas? Batalha sem Fim? Esperamos com expectativa o episódio que virá…