Portalegre Jazzfest
Fim-de-semana alentejano
O jazz voltou ao Alto Alentejo numa edição do festival que juntou os blues de Samuel James e o “mainstream” de Mário Laginha a duas propostas de ponta da actualidade a que uns responderam com entusiasmo e outros, assustados, deixaram a meio: Fire! e Lean Left (Ken Vandermark na foto acima).
O País é tão pequeno e foi tão laboriosamente alcatifado com alcatrão que entre Lisboa e Portalegre trocam-se facilmente viagens. É hoje fácil sair da exaustão da cidade e viajar sem grande esforço até à benignidade do Alto Alentejo. A jazz.pt lá foi até à fronteira, onde o portunhol é frequente, para ouvir a música sugeridapelo 11º Portalegre Jazzfest - um pequeno ponto, mas cada vez mais notável, no calendário dos espectáculos nacionais.
O micro-festival programa cinco concertos em três dias, com um evento de auditório seguido de um “after-hours” no bar do Centro de Artes e Espectáculos, boa música e muito e bom público. Assim foi a 20, 21 e 22 de Março…
Ganhos pedagógicos
A noite inaugural encheu o auditório do CAE para ouvir Mário Laginha. O músico português apresentou-se com o seu trio (Nelson Cascais no contrabaixo e Alexandre Frazão na bateria) e entregou uma música conservatorial. O pianista tem uma fluidez lírica admirável e um domínio absoluto do instrumento, mas o que sentimos é que é um de muitos no mesmo género. As suas composições raramente têm um carácter particular e as fontes de inspiração são-lhe igualmente recorrentes.
Ouvimos Chopin adaptado à vontade musical de Laginha, sem conseguir disfarçar o bocejo: as “opus” do polaco soaram valsantes, doces, mas muito pouco capazes de apontar caminhos de inovação ou de expressar peculiaridades dentro de uma linguagem tradicionalista. Destaque positivo para o primeiro solo de Frazão e negativo para o seu segundo, o que só quer dizer que o baterista fez o que se deve fazer no jazz – improvisar -, e é esse o prazer do encanto que nos faz sair do sofá de casa para nos instalarmos no do auditório.
O público saiu satisfeito com o que ouviu e o que se perdeu em música poderá ter sido ganho em pedagogia: as inaugurações tendem a ter um público mais social e o concerto desempenhou um papel propedêutico para muitos, com a música confortável de Laginha a contribuir para minorar a percepção de que o jazz é uma música difícil e dissonante, imprópria para consumo.
O “DJ set” que se seguiu ao espectáculo foi assegurado por Travassos, músico electrónico e o “designer” de serviço da Clean Feed. Apresentou uma selecção altamente invulgar e irresistivelmente dançante, criando um ambiente especial que manteve o bar vivo até à hora de fecho.
De pé a dançar
A segunda noite propôs os Fire! que, como o próprio nome indica, são um grupo incendiário. Radicalmente diferente do trio nacional, o grupo de bateria, baixo eléctrico e saxofone/Fender Rhodes liderado por Mats Gustafsson tocou uma música totalmente diferente da que tínhamos ouvido na noite anterior, no sentido em que procuram inventar a forma e não apenas o discurso e porque parecem melhor interpretar o sentido da música popular do nosso tempo.
Este projecto já tinha vindo a Portugal para o Jazz em Agosto (actuou no Teatro do Bairro) e a principal diferença, sentida logo no início, foi a qualidade do som, que esteve forte, alto e nítido. Em Portalegre, os Fire! ouviram-se impecavelmente, o que não tinha acontecido em Lisboa. Os suecos entregaram o que podemos descrever como música maximal repetitiva, com as obsessivas linhas de baixo a evocarem a estratégia de Miles Davis quando contratou Michael Henderson - que vinha do funk de Stevie Wonder - para repetir incansavelmente as mesmas linhas de forma a suportar as construções que ouvimos nas Cellar Door Sessions.
Johan Berthling repetiu, repetiu, repetiu, repetiu, repetiu, repetiu admiravelmente as mesmas malhas sem perder a carga, a intensidade, a força e a atitude. Não eram já as linhas “groovy” de Miles, mas frases mínimas de quatro ou cinco notas, quase matemáticas. É ele que suporta a banda e que a mantém coesa. A bateria de Andreas Werlin acentuou o ritmo e criou as condições para uma libertação espiritual. Ambos construíram uma oscilação melódica e rítmica regular, feita com a compulsão que só os cérebros perseverantes e milimétricos do Norte da Europa conseguem.
Foi sobre estas ideias fixas que interveio o saxofone de Gustafsson, acentuando o binário ou criando improvisações musculadas e intensas. O resultado surgiu como uma música próxima do transe, com um enorme gosto a rock, mas também com a liberdade melódica e a criatividade rítmica do jazz. Um som que não se enquadrou nas expectativas mais conservadoras de alguns (poucos) que foram abandonando a sala, mas que encheu as medidas de outros que aplaudiram entusiasticamente. O concerto acabou com pessoas em pé a dançar.
De costas voltadas
Intervalados, subimos para o primeiro andar, onde actuou Samuel James. É certo que se trata de um bar e de um ambiente mais informal e propício a dar à língua, mas não deixa de ser surpreendente que, tendo muitos dos portalegrenses a rara oportunidade de ouvir um dos grandes “bluesmen” da actualidade ao pé de casa, preferiram voltar-lhe as costas e alimentar alto uma conversa com os amigos. O músico fez 5000 quilómetros para vir de Portland, Maine, para tocar no CAEP e os locais, tão habituados que estão a material desta qualidade, usaram-no como música de fundo.
O som acústico e a dimensão musical de James pediam, quanto a mim, um ambiente mais focado. Bem amplificado, o concerto criou um ambiente dinâmico e ouviu-se com prazer, mas pecou pela excessiva informalidade. Samuel James toca guitarra acústica com enorme mestria e transpira pureza, erigindo-se a sua emoção sobre as raízes do sofrimento negro. O “wake up this morning” é cantado e ouvido como declaração e não como cliché.
Escala de cinzentos
Não sabíamos ainda, mas o festival vinha num crescendo e o último concerto, com os Lean Left, seria aquele que rebentaria com as expectativas. O quarteto é a soma de dois duos que funcionam extremamente bem em separado e, por essa razão, o risco de a soma poder ser inferior às partes era grande. O casamento de dois excelentes duos não resulta necessariamente num bom quarteto: há que resolver um problema de “match”.
E, de facto, o início da prestação fez temer o pior, com as guitarras dos holandeses The Ex a tomarem conta de todo o espaço sonoro e Vandermark a gritar, única solução possível para sobreviver naquela massa enorme e distorcida. Quando tudo parecia que iria funcionar a dois tempos – no silêncio e no noise –, eis que as guitarras nos surpreenderam com um léxico de pequenos acontecimentos musicais. Andy Moore e Terrie Ex têm uma enorme escala de cinzentos, e a ideia inicial que a música iria ser a preto-e-branco apagou-se.
Vandermark encheu a música com ideias interessantes: o “reedman fantastic” tem um cérebro capaz de bem ouvir as ideias dos outros músicos, seleccionar as melhores e desenvolvê-las de forma a extrair-lhes todo o potencial. Paal Nilssen-Love funcionou como elemento agregador, e o certo é que foi o que mais diálogos propôs. As dezenas de pormenores musicais que se sucederam, todos articulados, construíram uma música rica e muito bem improvisada. Ouvimos a beleza da música criada no momento na sua melhor expressão.
Muito positivo foi ainda verificar que, apesar de algumas pessoas terem desistido a meio do concerto, incomodadas pela música, a esmagadora maioria permaneceu (e o auditório esteve sempre bastante bem composto) e aplaudiu com entusiasmo.
A noite acabou, mais uma vez, no bar. O grupo de fãs femininas que apreciaram a guitarra, a voz e os bíceps de Samuel na noite anterior tinha aumentado (e aprimorado o decote) e o concerto de despedida foi bem mais vivo e participado, com o público interessado na música e no músico. Os blues encheram a sala, mas a sua inerente melancolia não contagiou: gerou anticorpos para voltarmos a Lisboa e enfrentarmos a pendularidade da nossa existência.
Portalegre deu-nos um festival a que dá vontade de voltar.