Jazz no Parque
Produto nacional
Foi uma edição exclusivamente portuguesa aquela que ofereceu em Julho o ciclo organizado pela Fundação de Serralves. A última programada por António Curvelo numa altura em que o evento parece estar a perder entusiasmo…
Na última edição do Jazz no Parque programada por António Curvelo, a ênfase dada ao cartaz exclusivamente nacional (se bem que com a participação de um alemão e um americano) teve direito a mais do que uma leitura. A oficial, oferecida pelo programador nas folhas de sala dos concertos, garante-nos que não são os constrangimentos orçamentais que conduziram a esta opção. A imediata, oferecida por vários meios de comunicação social, sublinhou a ideia muito portuguesa de que, em tempo de restrições, a "prata da casa" é uma alternativa "em conta".
No contexto de uma discussão mais vasta sobre a qualidade dos músicos e dos projectos portugueses, valeria a pena debater mais a fundo os méritos relativos dos projectos nacionais no panorama global e o papel dos programadores (indivíduos e instituições) nesse processo, mas o campo parece minado e o pequeno ciclo de jazz programado por Serralves, num contexto local e regional em rápida transformação— veja-se a evolução da actividade da OJM e da Porta-Jazz, só para citar dois exemplos—, parece perder relevância, na exacta medida em que se cristalizou.
O ambiente familiar das tardes no campo de ténis, nestes fins-de-semana de Julho, parece convidar, de ano para ano, a um relaxamento crescente que, no limite, arrisca-se a diluir a intensidade da experiência do público e pouco perdurar na sua memória. Com projectos nacionais ou estrangeiros, numa agenda em que, felizmente, vão surgindo mais solicitações – em quantidade, qualidade e diversidade –, o Jazz no Parque, sem alterações de formato, mesmo sem perder público, arrisca perder entusiasmo.
Note-se, previamente, que não assistimos ao primeiro concerto do ciclo, "100 Umbrellas" (foto em cima), de José Menezes, pelo que é só a partir da fruição dos restantes dois que resulta a sensação de que, no geral, se favorece o cumprimento, muito competente, de uma função que parece ser cada vez menos surpreender ou entusiasmar e cada vez mais confirmar e agradar.
Sendo esta uma visão muito pessoal, não se pretende, de forma alguma, desvalorizar o mérito do programador ou, menos ainda, dos músicos envolvidos nos projectos.
Guarda-chuvas e Charles Mingus
O quinteto liderado pelo saxofonista José Menezes que explora o repertório do compositor francês Erik Satie apresentou-se no primeiro domingo da série num concerto a que, infelizmente, motivos de força maior nos impediram de assistir. Serralves prometeu-nos a gravação do acontecido para apreciarmos a música “a posteriori”, mas a mesma acabou por não nos chegar às mãos.
Pela premissa, pelos músicos envolvidos e pelos excertos de outros concertos a que tivemos acesso, a curiosidade era grande. A forma como a linguagem "ambígua" de Satie se dispõe a uma exploração jazzística no contexto deste quinteto promete concertos de grande qualidade que, infelizmente, não têm acontecido com a frequência desejável.
Começámos o ciclo, pois, pelo meio. O projecto de homenagem a Charles Mingus, de Nelson Cascais, é um bom exemplo de algumas das afirmações recorrentes do Jazz no Parque: as figuras históricas do jazz norte-americano contêm em si uma quantidade e uma diversidade tais que justificam uma exploração por parte de músicos mais jovens, de qualquer continente, e daí poderá resultará uma visão particular, um projecto com voz própria, mas com raízes profundas num terreno "genuíno".
Reunindo músicos jovens, o quinteto de Cascais encontra no vastíssimo repertório de Charles Mingus um terreno fértil para a afirmação das suas vozes particulares e permitiu-nos a confirmação do que já sabíamos há muito: que temos agora novas gerações de músicos muitíssimo competentes. Na entrega dos temas, nos solos, na diversidade de registos, ouvimos muita música bem tocada, mas só a espaços sentimos uma identidade de grupo, capaz de reformular alguma das ideias de Mingus.
As estruturas relativamente convencionais e uma compartimentalização excessiva das funções musicais (tema / solo; secção rítmica / solistas; etc.), parece condicionar a construção de uma verdadeira voz colectiva, que muito nos interessaria.
Ainda assim, a viagem através de diferentes fases e influências de Mingus permitiu, neste concerto, a verificação de algo verdadeiramente fundamental: a forma orgânica como as raízes mais populares e genuínas do jazz norte-americano se desenvolvem e interagem com outros territórios musicais, num contínuo coerente. Uma constatação simples na análise do percurso de Mingus, que muitas vezes se desvaloriza tanto nos territórios ditos de vanguarda, como naqueles mais conservadores.
Azul com identidade
O trio de Carlos Bica encerrou a 22ª edição do Jazz no Parque com uma actuação que navegou entre temas mais recentes e alguns "clássicos", reforçando o que já sabemos acerca de "Azul": o lirismo do contrabaixista português encontra na dupla constituída por Frank Mobus e Jim Black um contraponto extraordinário, que dá força a um repertório com uma forte identidade – tão melodioso como angular, tão fluido como assimétrico.
A concentração do trio, que desmonta as estruturas e as funções tradicionais, fazendo de cada músico um solista e uma base de sustentação para o grupo, permite-nos desfrutar das identidades características de Bica, Mobus e Black e da forma inteligente como a condução da música vai sendo partilhada.
Com um Jim Black absolutamente genial na bateria, pela diversidade do timbre, pelo “timing” e pelo equilíbrio entre contenção e explosão (com solos absolutamente fenomenais), um Frank Mobus algo previsível, mas muitíssimo preciso, e um Carlos Bica em grande forma, quer na construção dos ostinatos assimétricos que caracterizam a escrita de Bica e Mobus, quer na veia melódica que lhe é tão natural, "Azul" preencheu em crescendo a última tarde do Jazz no Parque.
Concluo apresentando as minhas desculpas pela demora na publicação deste Report: sofri um acidente e, se nada se partiu, tenho estado bastante dorido…