Ljubljana Jazz Festival
Uma roda muito antiga
O festival de jazz da cidade eslovena cumpriu este mês de Julho a sua 54ª edição, com um programa que teve o português Pedro Costa, da Clean Feed, como co-curador. O homenageado foi Peter Brötzmann e estiveram lá o Motion Trio de Rodrigo Amado com Luís Lopes, Susana Santos Silva e Eduardo Raon.
Em Ljubljana está uma roda com 5200 anos: é a mais antiga que se conhece, fabricada para ajudar o homem a ajudar-se a si próprio. Também para se ajudar e melhor entender a vida, o homem criou a música. Não sei se na Idade do Bronze haveria música, ninguém sabe. Mas é fácil perceber que a primeira música feita pelo homem foi improvisada: a improvisação é a raiz de toda a música e antes de saber falar ou escrever o homem fez música e partilhou uma linguagem que está dentro de nós e para a qual não são precisas regras ou acordos. Faz-se naturalmente.
A Eslovénia, parte da antiga Jugoslávia, é um país pequeno com aproximadamente o tamanho de um quarto de Portugal e dois milhões de habitantes. Ljubljana é a capital, uma cidade tipicamente centro-europeia, com a arquitectura barroca do Norte (Praga, Viena, etc.) a dominar. Sem a exuberância das parentes mais ricas, esta urbe não oferece monas-lisas ao visitante e isso, a meu ver, é um dos seus trunfos: não é um local para andar stressado pelos monumentos turísticos que se convencionaram indispensáveis ao visitante.
Melhor é passear e ganhar tempo nas milhares de excelentes esplanadas (tantas e tão boas que fazem Espanha parecer acanhada), desfrutar do bom clima, dos vinhos e da comida. Reconhecemos em Ljubljana a simpatia e a hospitalidade como quase nossas, contrastando radicalmente com as de vienenses, suíços, checos ou alemães. A cidade faz-se a pé sem problemas: é uma espécie de Suíça boa, descontraída, gastronómica, acessível economicamente, sem a assepticidade e normatividade das cidades helvéticas.
Com e sem brilho nos olhos
E tem jazz num dos mais antigos festivais europeus, com 54 anos de música, sendo que, a partir do 51º, convidou Pedro Costa, da Clean Feed, para colaborar na programação. A paixão e o entusiasmo do lisboeta – o seu trabalho - é reconhecido por músicos, críticos e amantes do jazz e, por isso, este convite significa um reconhecimento merecido e que a todos deve orgulhar. O festival de 2013 começou no dia 2 de Julho com um curto solo do vibrafonista Jason Adasiewicz que homenageou Peter Brötzmann, a figura central desta edição.
No segundo dia, a tarde abriu com a inauguração de uma exposição que retrata a carreira do saxofonista alemão. Da galeria içámo-nos para o CD Klub (no cimo do mesmo edifício, com uma vista magnífica sobre a cidade) para ouvir o Sax and Drums, formação feita propositadamente para o evento, com duas baterias e dois saxofones: Chad Taylor e Hamid Drake batiam e Brötzmann e Vandermark sopravam.
O sax de Brötzmann ainda tem a intensidade e a atitude de quem sopra para salvar a vida, mas aos 72 anos o pulmão já não consegue responder com a mesma intensidade. Isso faz parecer com que toque melhor, substituindo a força por outros atributos. Pouco importa se já não conseguimos ouvir o fôlego sobre-humano de Brötzmann, o seu ataque bruto e enorme e o grito furioso que parece liderar um exército que luta pela liberdade. Ouvimos a sua maneira de falar única, o seu som, a variedade da língua própria de um indivíduo.
Vandermark construiu bases melódicas de suporte para os solos alemães e as baterias tinham duas opções: tocavam nos espaços uma da outra ou acertavam-se ritmicamente. Infelizmente, predominou a segunda hipótese, com Taylor e Drake em pulsações pouco entusiasmantes. Sempre que Drake procurava entrar em detalhes, Chad Taylor entrava com batidas previsíveis, o que deixou pouco lugar para soluções excitantes e obrigou os saxes a também entrarem nesse jogo. Saímos bem ouvidos, mas sem brilho nos olhos.
Dose tripla
O segundo dia ofereceu uma dose tripla, fórmula cada vez mais utilizada na Europa, com festivais de quatro, cinco, seis concertos por dia (uma espécie de campo de concentração para críticos e técnicos de som). Começou com Side A, o grupo de Vandermark que se estreou em disco na Clean Feed. No concerto ficou patente a impressão que trazia do CD: a magnífica capacidade de Håvard Wiik como compositor, com temas complexos, mas que não perdem um sentido cativante e melódico, aplainados por Chad Taylor, com uma bateria competente, mas sem surpresas.
Boa música, mas sem momentos notáveis. Seguiu-se o Cene Resnik Quartet, um grupo esloveno e italiano em partes iguais que cria música sem referências ou preconceitos (pré-conceitos). Bom concerto, com destaque obrigatório para o contrabaixista italiano Giovanni Maier, que foi enorme, inteligentíssimo nas respostas e nas contribuições. O líder, Resnik, esteve suficiente, num registo intenso, mas pontualmente desossado. Foi a grande surpresa da noite, até por ser um quarteto desconhecido.
O segundo dia fechou com uma actuação que entusiasmou o público, cheio de bate-pé e muito caloroso. O grupo, que era para só incluir Brötzmann, o baterista Hamid Drake e o tocador marroquino de gimbri (cordofone marroquino com som de baixo) Mokhtar Gania, passou a quarteto com a inclusão de Jasom Adasiewicz. E ainda bem que assim foi, porque o vibrafone permitiu que aquela música não fosse apenas ritualista, popular e simples. Elevou-a a um patamar extraordinário, com um primeiro solo absolutamente excepcional.
Gania disparou no gimbri aquilo que sabe fazer: linhas de baixo repetitivas e infindáveis. Drake alinhou logo e entrou no transe com ritmos calhados que ia colorindo com polirritmias da sua imaginação. Brötzmann fez a sua música, soprou à sua maneira, e o vibrafone transportou o que podia ser uma noite sem história para um outro universo. O concerto estendeu-se “ad nauseum”, pois ninguém sabia como parar o marroquino. Exageradamente repetitivo, foi perdendo carga e enchendo-se de tiques que degeneravam em deformidade, tendo chegado ao final quase por exaustão.
Do nada alguma coisa
O terceiro dia abriu com um dos grandes momentos desta edição do festival, um duo de Peter Brötzmann com o vibrafonista Jason Adasiewicz. Num anfiteatro invulgar, que permite grande proximidade de todos com os músicos, sem grande necessidade de amplificação, uniram-se de forma espantosa, entrelaçando os dois discursos como se se conhecessem desde sempre. Muita energia e um compromisso aberto e honesto com aquele momento, ouvindo, reagindo, construindo uma música espantosa e dando-nos o prazer de seguir esse fenómeno que parece mágico: do nada fazer alguma coisa.
Voltámos a subir para o clube a fim de assistir à prestação do Dre Hočevar Trio, com três jovens músicos da Bélgica, da América e da Eslovénia. É verdade que os ouvidos vinham mal habituados, mas uma hora de intervalo e uma mudança de lugar conseguiram dar-nos algum distanciamento, o suficiente para perceber que, em absoluto e não comparativamente, este trio não consegue apresentar argumentos minimamente interessantes. A bateria foi vulgar: correcta, competente, mas sem elementos diferenciadores ou especialmente criativos. O contrabaixo idem e o piano esteve demasiado afectado e leve. Música beata e lacrimosa que jazzia sem alma.
Já o quarteto sueco / norueguês que se seguiu foi diferente, com grandes composições e uma linguagem musical que não procura arredondar-se para modelos já existentes. Com os saxes de Kullhammar e de Mathissen a liderar, um equilíbrio muito bem criado entre a composição e as improvisações e uma atitude musical inteligente e livre, o som deste projecto – uma estreia mundial – deu vontade de os ouvir mais.
Seguiu-se o Ìlhan Erșahin Istambul Sessions, um quarteto super-rítmico. O nova-iorquino com sangue turco cria uma música com aroma balcânico dentro de uma máquina rítmica fervente, com o baixista a construir as bases para suportar a bateria e os solos de Erșahin. Festiva, dançável, exageradamente limpa e electrónica, a música fez com que acabássemos bem a noite, que se prolongou, como sempre, até tarde, na conversa, no terraço ao ar livre do auditório.
Improvisação transparente
O sábado foi o último dia de jazz e atacou-nos em força com sete concertos de seguida. Iniciou-se logo pela manhã, às 10 horas, com o European Saxophone Ensemble a dar música no mercado ao ar livre de Ljubljana. O grupo pretende divulgar o trabalho de vários saxofonistas jovens de vários países europeus (Portugal excluído).
Regressados ao CD Klub, ouvimos Eduardo Raon e Tomaž Grom em harpa e contrabaixo. Eduardo é português e vive na Eslovénia e este duo toca uma música feita com cordas. Cada tema parte de uma ideia musical no contrabaixo ou na harpa que é desenvolvida pelos dois, explorando as capacidades técnicas de ambos e permitindo abordagens invulgares aos instrumentos, com candonguices técnicas. Ouviu-se com prazer.
Seguiram-se Susana Santos Silva e Torbjörn Zetterberg (foto no topo da página), outro duo com presença portuguesa no trompete, prolongando o sentimento camerístico que vinha de trás. A música partiu de ideias extremamente simples que se iam desenvolvendo através do pormenor e de uma exploração laboriosa da forma musical inicial. O gozo extraiu-se da particular combinação do som metálico do trompete e do som amadeirado do contrabaixo e de verificarmos como é que as ideias se desenvolviam no cérebro dos dois e provocavam novas reacções musicais. Uma improvisação transparente.
Seguiu-se um momento que já é uma imagem de marca de Pedro Costa. Ao contrário da EDP, que brinda com champagne os seus negócios, apesar de ser uma empresa portuguesa, o responsável da Clean Feed tem insistido em provar que Portugal tem não só boa música como boa gastronomia, oferecendo aos eslovenos que assistiam ao festival queijos portugueses e vinhos do Esporão, que se associou a esta iniciativa. A Eslovénia é um bom país vinícola com muitos apreciadores e com copos de vinho prontamente disponíveis em todos os restaurantes e esplanadas. Os comes e bebes oferecidos (que foram explicados detalhadamente aos presentes) voaram elogosamente dos copos e das travessas.
Preparado o terreno sobre as nossas qualidades, actuaram de seguida o Motion Trio de Rodrigo Amado, desta vez adicionando a guitarra de Luís Lopes. Ferrandini esteve, como sempre, fabuloso (insisto na ideia de que é um dos melhores bateristas da actualidade), Lopes teve dificuldade em encontrar o seu lugar, mas quando o conseguiu foi excelente, e a música muito mais ritmada e forte do trio tornado quarteto fechou com qualidade a primeira parte das sessões do dia.
De 200 para 1500
Pausados durante um par de horas, fomos até a um novo local para os dois concertos de encerramento. O Križanke é um teatro coberto ao ar livre de grande capacidade, precedido por uma praça onde se pode comer e beber. Foi impressionante ver o festival crescer de escala e subitamente passarmos dos 200 espectadores do CD Klub para os 1500.
A noite antecipava-se estranha, pois oferecia dois concertos que pareciam condenados a um divórcio litigioso e com separação de bens: primeiro tocou um trio de Brötzmann e depois David Murray com Macy Gray. Confirmou-se a fractura, pois quem queria ouvir o homenageado com John Edwards e Steve Noble não aguentou a oleosidade do grupo de Murray e vice-versa.
O concerto do trio foi outro dos momentos altos do festival, em parte porque o saxofonista alemão, quando amplificado, soa mais perto do que estamos habituados e porque John Edwards, no contrabaixo, foi brilhante. A intensidade da música atirou muito dos presentes para os bares do átrio. Seguiu-se o Infinity Quartet de Murray (com piano / órgão, bateria e contrabaixo), uma proposta que parece ter sido desenhada para equilibrar as finanças de Murray no Verão, pois o nome de Macy Gray garante casas cheias.
O concerto correu mal, em parte porque Thornton Hudson Jr. é um pianista referenciado no jazz mais piroso, com uma linguagem de casino. Mesmo Nasheet Waits, que já ouvi tocar muito bem, fez dois solos acéfalos e limitou-se a ser previsível e fácil. O interesse maior estava nos vestidos que foram desfilando no corpo de Gray e uma interpretação de “Green Satin Dress” de Lawrence “Butch” Morris com letra de David (notável, por sinal), que foi muito bem cantada.
Seguiu-se a habitual “audience participation” (gritar parece ser a reacção oficial americana, pelo menos a avaliar pelos programas de televisão que nos chegam), com os concursos de bate palmas, bate pés e habilidades congéneres. Festivo, o Ljubljana Jazz acabou desta forma popular e “uplifting”, se bem que pouco jazzística, ou pelo menos pouco enquadrada na linha que fora seguida até então. Este foi um tipo de concerto apropriado para o EDP Cool Jazz, já que de jazz tem muito-pouco-quase nada.
Murray foi sempre óptimo nos solos, conseguindo encaixar ideias interessantes e invulgares naquela sopa musical. Macy Gray tem uma voz fantástica, uma presença em palco absorvente, mas – com excepção do tema já referido – foi bocejante. Ouvimo-la com curvada paciência.
A despedida foi no CD Klub com Mark de Clive-Lowe nas electrónicas e Vanessa Freeman na voz. Música muito dançável e bem cantada. Uma óptima solução para o encerramento, funcional e leve, para nos deixar cheios de vontade de voltar a Ljubljana. Está de parabéns a programação de Bodgar Benigar e Pedro Costa.
Não esquecerei Ljubljana, onde se está admiravelmente, bem como a sua roda com mais de cinco mil anos e uma zona da cidade dedicada à má vida nocturna que faz o Bairro Alto parecer uma casa de chá em Cascais.
*A cobertura do Ljubljana Jazz Festival pela jazz.pt fez-se com o patrocínio do Turismo da Eslovénia