Jazz ao Centro
De barriga cheia
E pronto. Os Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra passaram depressa, mas foram ricos em substância. Evan Parker a solo e com o XJazz Ensemble, Zanussi 5 em três noites ascensionais, Incompleto e o divertido “Banjazz” encheram as medidas.
Entre o Teatro Académico Gil Vicente, o magnífico Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, o Centro Cultural D. Dinis e o remodelado Salão Brazil, onde as noites sempre acabavam, o festival Jazz ao Centro fez, na sua 11ª edição, uma itinerância pela cidade dos estudantes. Atravessou a ponte do rio Mondego, subiu a Avenida Sá da Bandeira, chegou até ao topo dos edifícios universitários e entrou pelas ruelas da Baixa histórica. Não podia passar despercebido pela população e esta esteve presente, em bom número, nos concertos realizados no fim-de-semana que levou Maio para Junho.
Música sacra?
O cabeça-de-cartaz era um dos mais importantes saxofonistas da história do jazz ainda em vida: Evan Parker. O músico britânico participou em duas entradas da programação, num tocando e no outro dirigindo. Aquele em que tocou, no mosteiro do século XIII acima referido, foi simplesmente genial e ficará para sempre gravado na memória deste vosso repórter. Tirando partido da particular acústica do espaço, tornou dois instrumentos monofónicos, os saxofones tenor e soprano, em algo que provavelmente Adolph Sax, o seu inventor, não imaginaria possível.
Se o normal cultor de técnicas extensivas para os sopros, e designadamente da respiração circular, se dá por contente em obter duas “vozes” destes aerofones, nas suas improvisações Parker chegou a construir camadas de harmónicos com três e quatro vozes. Para tal recorreu a repetições de motivos, lembrando por vezes o minimalismo cíclico de Steve Reich e a electrónica pulsativa que recorre a “loops” e “delays”.
Apesar de as suas construções terem sido tendencialmente abstractas, por vezes não se coibindo de integrar sons agrestes e “desagradáveis” (estridências, por exemplo), alguma figuração muito específica transpareceu, desde alusões ao swing (com Ben Webster a vir-me à ideia) até micromelodias de carácter céltico. Com uma introspecção, um intimismo na relação do solo com o público, uma adequação à arquitectura circundante e até uma espiritualidade que quase se poderia dizer que foi um concerto de música sacra.
Nas duas ocasiões em que Evan Parker utilizou o tenor gerou-se um foco mais jazzístico, talvez porque é com ele que transparecem a sua matriz nesse idioma musical e as amarras que mantém com a estética free. Foi, no entanto, surpreendente verificar que a radicalidade da sua abordagem ao soprano passou também para o outro saxofone. Nenhum registo discográfico nos preparou para o que ali ouvimos, constituindo uma bem-vinda novidade – o mais ilustre convidado dos Encontros de Jazz de Coimbra continua a desbravar novos caminhos aos 69 anos de idade. Decididamente, Derek Bailey enganou-se quando o acusou de ter cristalizado…
Democracia sonora
Enquanto condutor, Parker retomou no TAGV um projecto nascido em 2012 nas aldeias do xisto vizinhas do Zêzere. Menos de um ano depois, os mesmos 17 músicos nacionais que com ele estiveram em residência artística voltaram a juntar-se para a continuação do trabalho realizado. Com apenas um ensaio, que serviu para relembrar algumas máximas caras ao mestre da improvisação – dar espaços, ouvir os outros, intervir apenas quando se tem algo a acrescentar, haver uma total clareza de intenções; em suma, as regras da democracia no mundo dos sons – e para estabelecer uma “timeline” de intervenção dos vários naipes, a actuação do XJazz Ensemble foi igualmente um ponto alto do evento.
Momentos especiais foram os protagonizados pelas cordas – a harpa de Angélica Salvi, a guitarra clássica de Marcelo dos Reis, os contrabaixos de Hugo Antunes e José Miguel Pereira, a viola de João Camões e o violoncelo de Miguel Mira – e pelo diálogo constituído por Camões, num registo deliciosa e inesperadamente neoclássico, e pelo saxofonista João Martins, sobre uma superfície electrónica providenciada pelo computador de Miguel Carvalhais e pelo “circuit bending” de Travassos.
O final foi realizado num crescendo de energia e volume para o qual muito contribuíram os guitarristas Luís Lopes e Gonçalo Falcão e as baterias de João Lobo, Gabriel Ferrandini e João Pais Filipe, mas até então o concerto decorreu segundo um encadear de subtilezas colectivamente entrelaçadas em que até as passagens de testemunho de um núcleo instrumental para outro aconteciam de forma natural, sem cortes nem sobressaltos.
Sempre de costas voltadas para a plateia, as indicações gestuais de Evan Parker não eram muito visíveis para quem assistia. Regra geral, apontar para alguém explicitava o que pretendia, mas poucos destaques individuais houve para além dos curtos solos – o coordenador da orquestra chamou-lhes «narrativas» no encontro de preparação – do trompetista Luís Vicente, que esteve muito lírico, e dos saxofonistas Rodrigo Amado e Pedro Sousa, o primeiro particularmente “jazzy” e o outro recorrendo a “slap tongues”. A música não era fácil, mas o aplauso ouvido na conclusão traduziu o entusiasmo gerado.
Em crescendo
Os “after-hours” dos três dias de duração do Jazz ao Centro estiveram entregues aos noruegueses Zanussi 5. No agora negro Salão Brazil, foi interessante verificar como as propostas do quinteto de Per Zanussi foram crescendo de sessão para sessão. Na primeira, Kjetil Moster, Eirik Hegdal, Jorgen Mathisen, o líder e compositor e Gard Nilssen agarraram-se demasiado às partituras e apresentaram uma música morna e desesperantemente arrumada. Na segunda já ouve mais energia e os improvisos soltaram-se a preceito, se bem que repetindo ainda os esquemas da noite anterior. Mas o melhor estava para vir…
Foi na última prestação que o grupo verdadeiramente “explodiu”, conseguindo um excelente equilíbrio entre leitura, espontaneidade criativa e entrega. Tudo ganhou um maior sentido: as influências orquestrais – bem mais numerosa parecia a poderosa frente de três saxofones dobrados por clarinetes – de Duke Ellington e Charles Mingus, as combinações de elementos vindos da música erudita, de algum rock, sobretudo o progressivo, e da música improvisada, os sofisticados jogos de contraponto e de métrica, com inspiração em fontes tão diversas quanto Bach, a música coreana e o afrobeat.
No meio de tudo isso também o primarismo físico da bateria de Gard Nilssen, que está muito depressa a tornar-se num sério rival de outro nórdico com apelido semelhante, Paal Nilssen-Love.
Será de suspeitar que recaiam para a última madrugada as selecções de material que constarão no disco a publicar em 2014 pela Clean Feed, na sua colecção JACC Series, com as gravações destes concertos. Os Zanussi 5 de 1 de Junho já não eram os mesmos de dia 30 de Maio: transfiguraram-se. Até os ritmos latinos marcados a sino de vaca me pareceram bem, eu que habitualmente não os suporto.
Poesia e crianças
As arcadas do D. Dinis abrigaram, por sua vez, a performance do trio Incompleto, compreendendo este dois músicos, José Valente na viola e Sérgio Tavares no contrabaixo, e o actor Cláudio da Silva. Entre um avant-jazz camerístico muito bem tocado, não sendo possível discernir escrita e improvisação (factor necessariamente positivo), e uma récita de poesia, o que se escutou foi muito para lá de todas as expectativas. Grande projecto, este de prata da casa, Coimbra.
Maria Morbey e o seu espectáculo para crianças “Banjazz, Um Bichinho Esquisito” ocuparam o Gil Vicente, numa acção de apoio a famílias carenciadas. Alguns dos miúdos presentes tiveram oportunidade de participar, dançando, experimentando os instrumentos e jogando, e o encanto próprio das fábulas instalou-se. A cantora é, indubitavelmente, o que se chama “um bicho de palco”, mesmo quando sai do tempo e desafina – o que se terá devido ao facto de a sua mobilidade em cena a impedir de ter monitorização com som de retorno. Bons executantes a acompanharam: José Soares, um Paulo Gaspar com nota cinco nos clarinetes, Franco Chirife, Yuri Daniel (óptimas malhas de baixo, como se diz na gíria) e Alexandre Frazão.
Este menu mais as acções no Largo do Poço, em frente ao Salão Brazil, e os lançamentos de dois livros com temática musical podem ter sabido a pouco, mas só porque, quando se fica com a barriga cheia, queremos sempre mais… E mais haverá, com o Salão a dar jazz (e não só) aos conimbricenses com uma frequência quase diária.