MIA – Encontro de Música Improvisada de Atouguia da Baleia
O congresso da improvisação
Pela quarta vez, a grande cimeira dos improvisadores portugueses (e não só) da vila situada a Oeste congregou numa festa como não há igual a comunidade dos músicos que compõem no próprio momento em que interpretam. Até a sardinhada foi épica.
Se hoje podemos afirmar que há uma efectiva comunidade de improvisadores em Portugal, estejam eles ligados ao jazz ou percorram vias mais “exploratórias” (não são poucos aqueles que somam os dois investimentos), deve-se tal, em grande parte, à existência de um evento como o MIA – Encontro de Música Improvisada de Atouguia da Baleia.
Uma vez por ano (realizou-se no passado fim-de-semana a quarta edição), e coincidindo com o final do mês de Maio, algumas dezenas de músicos que escolheram a improvisação como método, técnica e estética encontram-se na vila de Atouguia da Baleia, vizinha de Peniche, com o único propósito de tocarem juntos.
O MIA é como que um congresso de improvisadores, em que pessoas dos mais variados níveis de experiência criativa no momento e, igualmente, de domínio instrumental têm a oportunidade de estabelecer uma cooperação. Uns com o objectivo de aprimorar as suas capacidades e os seus conhecimentos, outros partilhando aquilo que sabem e podem com quem está a dar os primeiros passos. Sem dinheiro envolvido, mas de porta aberta, ou seja, com o público local a assistir.
Trata-se, pois, de um festival de características únicas, não só em Portugal como no mundo. Por isso mesmo, algumas figuras internacionais rumam ao nosso país, custeando as suas próprias viagens, para vivenciarem as sinergias que nascem na Sociedade Filarmónica 1º de Dezembro.
Christophe Berthet (Suíça), Noel Taylor (Reino Unido), o duo White Noise Generator (designadamente Gerardo Antonacci e Marco Malasomma, Itália), Marco Scarassatti (Brasil), Maresuko Okamoto (Japão) e Matthias Boss (Suíça) participaram este ano nas “hostilidades”, reforçando um painel em que figuravam Carlos “Zíngaro”, Rodrigo Amado, Paulo Curado, Monsieur Trinité, Paulo Chagas, Fernando Simões, Miguel Mira e Abdul Moimême, para referir as figuras mais consagradas da prata da casa. Anunciado pela organização, o americano Blaise Siwula acabou por não poder vir…
Grupos aleatórios
O prato-forte do MIA é constituído pelas actuações aleatórias. Se em anos anteriores os nomes dos integrantes nos grupos “ad-hoc” eram retirados de um saco na altura da actuação, nesta edição foram sorteados previamente por computador. Durante as tardes de sábado 25 e domingo 26 sucederam-se as mais improváveis das formações, e como é de regra em se tratando de música improvisada, com resultados desiguais. Algumas das combinações não funcionaram, outras cumpriram com competência o propósito intencionado e, no meio das dezenas de intervenções, meia-dúzia conseguiu a especial magia de entrosamento e inventividade que só a improvisação permite.
O maior aplauso foi para um colectivo em que sobressaiu o trombone de Fernando Simões, homem que é tão bom a assar sardinhas (grande banquete comunitário, o de domingo) como a soprar. A prestação terminou do mesmo modo como teve início, parecendo haver uma estrutura estabelecida (não havia), numa comunhão de propósitos que entusiasmou a assistência.
Como nos anteriores MIA, também este ano alguns intervenientes se evidenciaram nas provas-de-fogo definidas pelo acaso. Um foi Gil Dionísio, jovem violinista de atitude performativa a que importa ir dando atenção. Também de referir Fernando Guiomar, guitarrista de uma musicalidade refinada, e Marco Scarassatti, que a todos intrigou com a sua “viola do coxo”, um cordofone do centro-nordeste brasileiro, e outros instrumentos exóticos. Ainda o saxofonista soprano Christophe Berthet, Noel Taylor com os seus clarinetes e a cantora Maria Radich.
Além dos mencionados, apreciei ainda as generosas contribuições para a festa de Bruno e João Parrinha, Eduardo Chagas, Gloria Damijan, Miguel Falcão, Nelson Piton, Nuno Morão, Raphael Ortis, Yaw Tembe, Alvaro Rosso e Paulo Leal Duarte.
Projectos fixos
Outro painel do Encontro de Música Improvisada de Atouguia da Baleia é constituído pelas formações já estabelecidas. Foi por aqui, aliás, que o festival arrancou, logo colocando a bitola bem alto: um solo de Carlos “Zíngaro”, a 24 de Maio, no especial cenário acústico da Igreja de S. José. No final, o violinista dispôs-se a conversar com a assistência, respondendo às questões que lhe colocavam e assumindo um papel didáctico.
O MIA de 2013 marcou também o regresso do Colectivo Orgástico, projecto da década de 1980 que envolveu Monsieur Trinité, Jorge Lampreia e Paulo Chagas. Os cabelos brancos dos três improvisadores falavam por si, tendo o suporte de um quarto elemento algumas décadas mais novo, o baterista Pedro Santo. Para estes ouvidos foi um dos melhores concertos do Encontro, tendo aberto as apresentações de sábado.
Um quinteto de electrónica coordenado por Ricardo Webbens, mas com um Miguel Sá particularmente interveniente, fez-se ouvir à noite. Pecou pela excessiva duração das construções sonoras propostas, mas foi assaz curiosa a lógica prosseguida de adição e subtracção de camadas de materiais.
No domingo tocou o Motion Trio de Rodrigo Amado: free jazz com atitude punk, violento na expressividade e desmesurado nos decibéis, compensando a falta de dinâmicas com os combinados assomos de energia de Gabriel Ferrandini, Miguel Mira e do líder saxofonista. Mais adiante, a situação oposta, com o camerístico Wind Trio de Paulo Chagas, Paulo Curado e João Pedro Viegas numa multiplicidade de palhetas (do mais agudo, o oboé, ao mais grave, o clarinete baixo), jogando tudo na subtileza dos detalhes e das interacções.
Ensembles conduzidos
Os cerca de 70 participantes dividiram-se ainda em quatro grandes formações, igualmente designadas por Ensemble MIA, que tiveram Paulo Curado (o regente de um “workshop” realizado na tarde de sexta-feira), João Pedro Viegas, Gianna De Toni (contrabaixista italiana residente em Ponta Delgada) e Manuel Guimarães como condutores.
Particularmente bem-sucedidas foram as direcções improvisadas de Viegas e Guimarães. O primeiro com desvelos de escultor, moldando a massa de sons, o segundo gerindo naipes e timbres como se estivesse diante de um coro.
O regresso a casa fez-se já na madrugada de domingo para segunda, com o cansaço feliz de horas seguidas de música em que se deu muito e se recebeu muito. Paulo Chagas e Fernando Simões, os organizadores desta iniciativa, estão de parabéns. O que têm feito pela causa está a dar frutos…