Festival Causa Efeito
O presente causa futuro: Jazz na Universidade NOVA
Ao completar 50 anos, a universidade sediada em Campolide lança um programa cultural - NOVA Cultura - e cria uma pró-reitoria para esta área. É a oportunidade para organizar um festival de jazz importante, programado por Pedro Costa. Virado para o futuro, como compete à academia, o festival Causa Efeito aponta caminhos e propõe-se como um pretexto para o diálogo entre uma cultura de inovação e de investigação e a experimentação na prática artística.
Num momento em que a superioridade do ensino nem sempre se reflete na elevação cultural dos estudantes (basta consultar os programas das “festas académica” das associações para verificar que o investimento no trajar é inversamente proporcional à nudez cultural) o Causa Efeito tem uma importância acrescida: se não fossem as instituições - como a Gulbenkian e agora a Universidade NOVA - Lisboa não teria um festival de referência internacional no jazz. É talvez das poucas capitais europeias com esta ausência (não ignoramos a festa do jazz, que tem um caráter propedêutico e de ponto de situação, mas que não cumpre esta premissa).
A qualidade e dimensão deste evento, com 13 concertos, permite-nos desde já afirmar que será um dos mais importantes do ano jazzístico da capital: apresenta um progama com uma personalidade própria e muito informada sobre o jazz dos nossos dias.
Para além dos concertos, estão ainda previstas ações de reflexão, diálogo e debate com jornalistas, investigadores e programadores nacionais e internacionais e, claro, uma componente didática, pensada para o público mais jovem e famílias, potenciando a descoberta e compreensão desta música.
“Causa e Efeito” é a relação entre dois eventos consecutivos, sendo que o segundo é consequência do primeiro. É um dos princípios do método científico. E da improvisação. Fala-nos de um festival que interroga esta música e o seu momento atual. É disso que gostamos. Antecipemo-lo:
28 DE JUNHO, QUARTA-FEIRA
Abre no dia 28 de junho à tarde [17h30] sem música mas com debate. A mesa-redonda: “jazz – que presente” parece uma provocação. A forma afirmativa - sem ponto de interrogação – é uma referência ao título corriqueiro em mesas redondas (qualquer coisa: que futuro?). Antecipa um encontro de ideias para um ponto de situação sobre a atualidade. Contará com a participação de Stewart Smith, Guy Peters, Beatriz Nunes e Pedro Rôxo, para além do programador Pedro Costa.
Logo de seguida [19h30] é tempo para a música com um solo do virtuoso Sérgio Carolino (o único tocador de tuba europeu com contrato com a Yamaha; recebeu por seis ocasiões o Roger Bobo Award Prize, o Prémio Carlos Paredes e o prémio SPA [na categoria de Música Erudita] pelas obras editadas e acção divulgadora da música portuguesa pelo Mundo). Da sua tuba Frankenstein, o “Lusofone Lúcifer” saem sons enormes: é um instrumento construído à mão por dois fabricantes americanos (Tim Sullivan e Harold Hartman), a partir de peças de outras tubas dos anos 50 e 60. Trata-se de um instrumento idealizado pelo músico e inspirado no “Oren-o-Phone” do britânico Oren Marshall.
É luciférica por ter um som imenso, com graves poderosíssimos. Nas mãos e boca de Sérgio Carolino, o único capaz de a domar, transforma-se numa ferramenta musical interessantíssima, como ficou registado no disco “Below 0” que a jazz.pt já ouviu.
A enorme competência técnica de Carolino alimenta uma igualmente grande curiosidade por diferentes idiomas musicais, desde o repertório clássico e contemporâneo para tuba ao jazz, funk e improvisação. O concerto será nas escadarias da reitoria da Universidade Nova, um espaço arquitetónico belíssimo desenhado pelos Aires Mateus e que certamente amplificará sónica e cenicamente o concerto.
Para fechar o primeiro dia [21:30] Carlos Bica flirtará com Beethoven no Auditório da reitoria. O disco deste projeto ainda é um mistério, por isso a curiosidade para o ouvir estrear ao vivo é enorme: um saxofone, um acordeão, um contrabaixo, um par de gira-discos e... Beethoven?
A essência melódica dos dois portugueses - Carlos Bica no contrabaixo e João Barradas no acordeão, com a elegância de Daniel Erdmann e o colorido louco de DJ Illvibe (Vincent von Schlippenbach), propõem-se reler a herança Beethoviana. Para Bica é, de certo modo, um regresso a um momento inicial da sua vida musical, à sua formação, quando foi para a Academia de Música de Würzburg, na Alemanha estudar. Nesse período integrou várias orquestras de câmara como a Bach Kammerorchester e a Wernecker Kammerorchester. No fundo este projeto junta o trio “I Am The Escaped One” (com o DJ Illvibe e Daniel Erdmann) a Barradas de modo a aumentar significativamente a capacidade “orquestral” como o som cheio (e um certo zest baviero) do acordeão.
João Barradas já é um dos mais conceituados acordeonistas europeus, movendo-se entre a música clássica, o jazz e a música improvisada e venceu alguns dos mais prestigiados concursos internacionais de música erudita para o seu instrumento. Em 2016 gravou o seu primeiro álbum de jazz enquanto líder (“Directions”), produzido por Greg Osby e entrou nas listas dos melhores do ano da revista americana Downbeat.
Existem por isso razões de sobra para estar na fila da frente deste concerto e ver “nascer” esta música Nova/Clássica. Antecipamos um clip do disco "Playing With beethoven", feito a partir de "Moonlight Sonata" a que Carlos Bica chamou "Julie".
29 DE JUNHO, QUINTA-FEIRA
Segundo dia do festival, segundo concerto, o primeiro do novo grupo do guitarrista de Lisboa Luís Lopes, o Abyss Mirrors. Este grupo alargado (10 músicos) tem duas guitarras elétricas, duas eletrónicas, dois saxofones, um trio de cordas (violoncelo, viola e violino) e baixo elétrico. Notamos desde logo a ausência da bateria e a repetição de instrumentos com a mesma natureza.
O Abyss Mirrors já gravou esta música em disco, com este grupo que reune muitos dos improvisadores da Capital. O título do disco “Echoisms” fala-nos de Eco, a ninfa que perdeu a fala e só conseguia repetir as últimas palavras de quem falava com ela (mas que causou a morte de Narciso). Mas é uma referência clara à reverberação, ao som que vai e volta. Nas palavras do próprio, os músicos convocados servem de bases inspiradoras para a procura de uma linha de continuidade com a música que nasce dos ensembles de Sun Ra e avança pelos períodos elétricos de Miles Davis e Ornette Coleman, prosseguindo com Wadada Leo Smith.
A tarefa desta quase-orquestra multinacional (Portugal, Suécia, Finlândia e Brasil — toda radicados em Lisboa) não é de somenos. Vamos ouvir Luis Lopes e Flak nas guitarras, Jari Marjamaki e Travassos nas eletrónicas e outras traficâncias elétricas, Yedo Gibson e Bruno Parrinha nos saxofones, Felipe Zenícola no baixo elétrico, Helena Espvall no violoncelo, Maria da Rocha no violino e last but not at all least, Ernesto Rodrigues na viola.
Para encerrar a noite do segundo dia [21h30], ainda no auditório, será a vez de um trio que junta a guitarrista (pedal steel) Susan Alcorn com o saxofone de José Lencastre e o contrabaixo de Hernâni Faustino. A improvisação dominará este concerto que terá na guitarrista a base melódica e ao mesmo tempo uma inevitável evocação americana tradicional, que a pedal steel traz. Alcorn tem procurado explorar e expandir as possibilidades desta guitarra horizontal (que está tão fechada na sua sonoridade country). Veio a Lisboa, ao Jazz em Agosto em 2022, integrada no grande grupo de Nate Wooley que tocou o Seven Storey Mountain VI (que, relembramos, foi um dos melhores concertos do ano passado para a jazz.pt), quando conheceu Lencastre e surgiu esta ideia de somar ao saxofone um contrabaixo. Resultou e os três decidiram ir aos estúdios Namouche gravar. As sessões resultaram num disco que ainda está por revelar - “Manifesto” – e que será lançado no festival. A música antecipa-se melodiosa, estruturada pela narrativa paisagista da guitarra, interceptada por vezes por formas disruptivas, num contínuo de grandes horizontes.
30 DE JUNHO, SEXTA-FEIRA
Sexta é tradicionalmente um dia de distensão, que marca o final da semana de trabalho (causa); o (efeito) é o de ter quatro concertos de seguida.
Sem parar, regressamos ao auditório da reitoria. O primeiro, às 18h é um duo entre João Barradas no acordeão e Hugo Carvalhais no contrabaixo. Um projeto novíssimo que encurta distâncias entre Centro e Norte do país e entre dois instrumentos com naturezas muito diferentes. O Acordeão com um som metálico, vive do aspiração e expiração (ou sintetizado, quando adquire múltiplas personalidades sonoras) enquanto o contrabaixo vem da tradição orquestral erudita europeia, cheio de som a madeira. Um habituado a festas populares o outro a salões nobiliárquicos. Será mais uma estria promovida pelo programador que se antecipa muito curiosa.
O contrabaixo de Carvalhais é muito estruturado e feito de linhas melódicas coerentes, que têm tanto de organização como de melodia. Por outro lado, é um improvisador inteligente, que sabe ouvir e propor. Barradas tem nas mãos uma enormidade de sons e pode construir mundos sonoros complexos, como também encher o espaço sonoro com fundos abstratos, quase sinfónicos, que darão espaço ao contrabaixo. Um diálogo muito bem lançado pela programação que se antecipa com muita curiosidade.
Sem tempo para folgar [19h30], seremos convocados para The Selva um trio forte que já ouvimos em disco e que vamos querer ver funcionar ao vivo, incorporando os imprevistos do momento.
São dois instrumentos da mesma família em diálogo (contrabaixo e violoncelo), com a bateria de Nuno Morão que mais do que marcar ritmos, constrói uma camada de percussões muito abstrata, como a vida natural de uma floresta. O nome, estamos em crer, poderá vir desta ideia da naturalidade das madeiras quando soam sem uma organização racional e parecem guiadas pelos diálogos naturais. Na selva as árvores são “tocadas” pelo caminhar dos animais ou pelas bicadas dos pássaros. É uma música que acontece a partir das ocorrências da vida e que nos soa tão enigmática quanto bela. É o mundo das chamadas e das réplicas, dos diálogos incompreensíveis para os humanos, dos códigos inatos. Os The Selva são madeiras à procura de uma conversa. São Ricardo Jacinto no violoncelo e eletrónicas, Gonçalo Almeida no contrabaixo e também em eletrónicas e a bateria e percussões várias de Nuno Morão numa linguagem intuída a três.
Às [22:00] será o tempo de mais um duo idealizado pelo programador: trompete e contrabaixo. Dois dos nossos músicos mais internacionais (no jazz) - Susana Santos Silva e Carlos Bica -, portugueses, uma a viver em Estocolmo e o outro em Berlim apresentarão temas originais e seguramente, muita improvisação. Dois instrumentos melódicos com duas personalidades quase opostas. Um metálico, liderante, e o outro de madeira, estruturante. Num duo tão cru, os dois desempenharão várias funções e serão voz e fundo alternada e simultaneamente, como a música o ditar. Mais uma vez o interesse aqui, para além de ouvir a música que farão – o principal - é o de presenciar uma ideia nova, criado pela pressentimento musical do programador.
Por fim, às [23h], para fechar um dia intenso, iremos até ao “Páteo” para ouvir os MOVE. Quem já os ouviu em disco e ao vivo sabe que este projeto é energia e pulsação: música rápida, faiscante que nos deixa agarrados à cadeira. Os músicos atacam os temas como se estivessem a lutar pela sobrevivência numa arena romana, onde adejam machados e assaltam animais. Tudo se passa a velocidades furiosas e o baixo elétrico de Felipe Zenicola, o saxofone de Yedo Gibson e a bateria de João Valinho tem uma enorme sincronia funcionar naquele ambiente intenso. Os MOVE são ainda melhores ao vivo do que em disco pois vê-los a interagir àquela velocidade deixa-nos presos à música e entusiasmados com as soluções simples, sempre em mudança.
DIA 1 DE JULHO, SÁBADO
E como tudo tem que acabar, o “Causa e Efeito” fina-se no dia 1 de julho, sábado com um dia cheio. Cinco concertos de seguida vão encher a alma e os ouvidos de quem vá até Campolide.
A receção é feita às [16h] numa ação pedagógica liderada por Isabel Rato. Um concerto para famílias, comentado em que a pianista inserida num quinteto com saxofone, voz, piano, contrabaixo e bateria procurará desdramatizar esta música e torná-la acessível.
Às [18h], ainda no auditório, o trio One Small Step vindo da noruega, com Roger Arntzen, o contrabaixista dos Chrome Hill, Vegar Vårdal – músico, bailarino, pedagogo - no violino e Janne Eraker em sapateado. Quem já ouviu o disco não pode deixar de estar entusiasmado para ver ao vivo esta formação tão esdrúxula. O sapateado é dança e som. Usado numa forma abstrata (como nos One Small Step), onde não há vontade de produzir ritmos regulares, mas sim criar uma percussão desconexa, deixa-nos a imaginar o que se estará a passar com o corpo. Ouvimos uma bateria de madeira estranha, quase como o stompin’ dos blues, mas sem organização rítmica; também a voz aparece numa língua inventada, “cantando” sequência perdidas, algures entre as canções de trabalho e a venda de um leiloeiro. Neste mundo excêntrico aparece um contrabaixo a tentar desesperadamente encontrar lógicas.
Os One Small Step expandem algumas das ideias fundadoras do jazz: a abertura de novas possibilidades nos instrumentos da tradição europeia, de uniões novas de instrumentos que viviam em mundos diferentes, a exploração de ideias musicais imprevistas. Este é um caso de uma formação que, mais uma vez, aposta numa formato original – sapateado, violino e voz e contrabaixo - ligando a produção sonora aos aspetos performativos, tentando – e conseguindo – abrir caminhos novos.
Às [19h30] mais uma proposta nova. A pianista Margaux Oswald que nos encantou com “Dysphotic Zone”, onde levou o piano para terrenos sonoros novos, tornando-o numa máquina imensa, grave e reverberante, junta-se ao saxofonista dinamarquês Jesper Zeuthen. Ouvimo-la já em duo e sabemos que a sua música muda, apesar de surgirem frequentemente as grandes unidades sonoras imóveis. O saxofonista navegará por cima destas grandes massas de som que Margaux gosta de soltar. Contudo, a pianista quando entra neste contexto de diálogo adapta-se também, não se limitando a contruir bases, mas entrando em diálogo, usando ideias melódicas ou rítmicas. Será por isso uma conversa interessante de seguir e onde também teremos a oportunidade de ouvir a pianista num mundo colaborativo onde não estamos habituados a encontrá-la.
Este último dia irá ser – já o dissemos – cheio: depois de três concertos à tarde, teremos ainda mais dois à noite.
O primeiro às [22h] em trio, com piano, contrabaixo e bateria, um formato clássico, dir-se-á, mas neste caso os instrumentos estão nas mães e cérebros de três músicos que subvertem por completo todas as normas criadas pela tradição. ”Aqisseq” é o nome do último disco lançado pelo trio (2018) e em que podemos ouvir um mundo musical rápido, cheio e emocionante.
Entramos numa região peculiar, tensa, onde seguimos um diálogo feito com sons e não com notas musicais, sons esses que nos vão dando razões “lógicas” para os acompanhar. Constroem formas, unem-se em ideias, como nos grandes cardumes, ou bando de andorinhas, que não parecem ter uma ordem, mas onde o nosso cérebro consegue reconhecer movimentos
O trio é composto pela pianista francesa Sophie Agnel, o contrabaixista John Edwards e o baterista Steve Noble: duas grandes referências históricas da improvisação inglesa com uma pianista francesa.
Dominam os sons percutidos curtos e os raspados, metalizados (nas cordas do piano ou nos pratos da bateria) num diálogo rápido onde há imensa coisa a acontecer. É difícil identificar que instrumento produz que som, pois os modos de tocar pouco académicos, o piano “preparado” abre um mundo sonoro novo.
A primeira gravação deste trio “Méteo” foi feita ao vivo no festival francês com o mesmo nome e saiu em 2012. Mais de 10 anos depois vamos poder ouvi-los novamente ao vivo, sem um plano prévio, mas muito mais conhecedores da música do grupo. E esperar que se faça magia novamente.
E será já perto da meia-noite que o trio de Luís Vicente, expandido a quarteto com Tony Malaby ocupará o palco instalado no Páteo. Será a despedida desta primeira edição do “Causa e Efeito”. [23:30] Ouviremos um trio português numa fase cimeira de cada um dos seus integrantes: Luís Vicente no trompete, Gonçalo Almeida no contrabaixo e Pedro Melo Alves na bateria. À equipa lusa juntar-se-á Tony Malaby; o saxofonista americano é hoje uma presença permanente no circuito nova-iorquino.
Começou como sideman na Liberation Music Orchestra de Charlie Haden, na Electric Bebop Band do Paul Motian e no quinteto de Fred Hersch, mas iniciou a gravação enquanto líder - ou em co-liderança – no final dos anos 90. Conhecemo-lo mais tarde, em 2008, num disco marcante da editora Clean Feed ( do programador do Causa e Efeito, Pedro Costa), “Tamarindo” com William Parker no contrabaixo e Nasheet Waits na bateria. Na altura já se percebia que Malaby seria uma voz marcante no seu instrumento, um saxofonista melodioso, com um som enorme que faz o saxofone soar a uma secção de metais de uma orquestra. Claro e sucinto, não esbanja notas.
Luís Vicente tem construído um percurso muito interessante, explorando precisamente este formato de trio, trompete, contrabaixo e bateria, a que adiciona diferentes saxofonistas. Com uma frente de dois sopros, faz uma música solar, feita de pequenas ideias festivas. Quase que ouvimos as melodias modestas das bandas filarmónicas, desenvolvidas e complexificadas pela improvisação.
Será certamente um fecho forte e festivo que avança pela noite de domingo, que nos deixará curiosos para a programação do próximo “Causa e Efeito”.