Jazz no Parque / Barreiro
Barreiro tem novo festival de jazz
No próximo mês de junho vai nascer um novo festival de jazz. O nome repete outro que se faz no Porto, porque também se realizará ao ar livre, mas terá lugar na margem sul do Tejo. Bobo Stenson (foto acima) e Jakob Bro são os cabeças-de-cartaz, mas o grosso da programação faz-se com a prata da casa.
À beira de Lisboa, o Barreiro ganhou protagonismo ao longo do século XX sobretudo por via de uma intensa atividade industrial que deixou marcas, para o bem (emprego) e para o mal (passivos ambientais). Durante décadas, foi uma das principais portas de entrada na capital, sobretudo para quem vinha de sul, em especial do Alentejo, o que contribuiu de modo decisivo para moldar uma identidade muito particular. Nos últimos anos, a cidade tem procurado, de modo gradual, redefinir-se enquanto urbe de média dimensão, sem esquecer os traços essenciais dessa história, também muito centrada na sua ligação ao rio Tejo. Este foi desde sempre um lugar de resistência e inconformismo.
Na música, o Barreiro também tem vindo a construir um panorama rico e variado, onde avultam festivais como o Out.Fest, dedicado às correntes mais experimentais, ou o Barreiro Rocks. Não esquecer também o interessante trabalho desenvolvido pela Escola de Jazz local, cujos combos marcaram presença, por exemplo, nos concursos da Festa do Jazz do São Luiz. Há ainda outras pequenas escolas, uma camerata clássica e muita gente a tocar em várias áreas.
A juntar a isto, surge agora um novo festival de jazz, iniciativa da Câmara Municipal, que endereçou um convite a Jorge Moniz (músico e antigo diretor pedagógico da Escola de Jazz do Barreiro) para assumir a curadoria. A primeira edição do Jazz no Parque (não confundir com o homónimo portuense) tem lugar nos dias 28, 29 e 30 de junho de 2019, no Parque da Cidade, espaço de fruição inaugurado em 2000 no local onde outrora existiu a Quinta da Maceda, propriedade dos Condes de Castelo Melhor.
O evento arranca no dia 28 (sexta, 22h), logo com um dos destaques: o regresso a Portugal do trio do veterano pianista sueco Bobo Stenson, que este ano completa 75 anos de idade. Com ele estarão um companheiro de longa data e outra luminária do jazz nórdico, o contrabaixista Anders Jormin, para além do excelente baterista Jon Fält, mais ligado à nova vaga do jazz sueco (com ligações a Portugal através da colaboração com a trompetista Susana Santos Silva). Trazem na bagagem o disco de 2018, “Contra la Indecisión”, cuja peça-título é uma composição do cubano Silvio Rodríguez, mas onde é revisto outro material, que inclui peças de Béla Bartók, Erik Satie e do catalão Federico Mompou (uma referência também para o saudoso Bernardo Sassetti). De esperar música reflexiva e de um intenso lirismo, conotada com o chamado “som ECM”.
No segundo concerto da noite (23h) sobe ao palco o Sexteto de Jazz de Lisboa, formação que integra figuras importantes das últimas quatro décadas do jazz nacional: Tomás Pimentel (trompete), Edgar Caramelo (saxofone tenor), Mário Laginha (piano) e Mário Barreiros (bateria), a que se juntam dois nomes da nova geração: o saxofonista alto Ricardo Toscano (sucessor no lugar de Carlos Martins e do malogrado Jorge Reis e que liderará o seu próprio quarteto na noite seguinte) e o contrabaixista Francisco Brito. O sexteto foi fundado em 1984 e separou-se em 1990; no ínterim gravou um disco, que é hoje raridade para colecionador. A formação voltou aos palcos em 2015, pela mão dos organizadores do ciclo “Histórias de Jazz em Portugal”, António Curvelo e Manuel Jorge Veloso. Tem a particularidade de ostentar o nome da capital mas de integrar, também, músicos do Porto, num saudável e infelizmente pouco frequente exercício de cooperação norte-sul.
O segundo dia (sábado, 29) inicia-se às 19h com a Big Band da Escola de Jazz do Barreiro, sob a direção de José Monteiro (trompetista e professor na escola), naquela que constituirá mais uma oportunidade para mostrarem o meritório trabalho que têm vindo a fazer. Segue-se, às 22h, o trio do guitarrista dinamarquês Jakob Bro, acompanhado pelo extraordinário contrabaixista norte-americano Thomas Morgan, músico de notável precisão e seu colaborador em vários contextos, e o baterista Joey Baron, que emergiu associado a John Zorn e aos seus grupos Naked City e Masada. Com uma sonoridade muito pessoal, Bro movimenta-se com particular à-vontade em registos mais intimistas, mas sem se limitar a estes, tendo vindo a conquistar um espaço de destaque, para o qual contribuem as duas gravações que editou no ano passado, ambas no selo de Manfred Eicher: “Returnings”, em quarteto, com Morgan e dois outros pesos-pesados do jazz oriundos do norte da Europa, o também dinamarquês Palle Mikkelborg no trompete e o norueguês Jon Christensen na bateria, e “Bay of Rainbows”, gravado ao vivo em julho de 2017 no clube nova-iorquino Jazz Standard, precisamente com o trio que se apresentará no Barreiro.
A fechar a noite (23h), apresenta-se o Ricardo Toscano Quarteto, no qual ao aclamado saxofonista alto se juntam outros três jovens músicos de valia mais do que provada: o pianista João Pedro Coelho, o contrabaixista Romeu Tristão e o baterista João Lopes Pereira. A formação lançou um muito aguardado registo de estreia no ano passado, com chancela Clean Feed, que figurou no píncaro das listas de melhores do ano da generalidade da crítica nacional. A abordagem pós-bop do grupo não é um fim em si mesma, antes servindo de trampolim para outras aventuras. A incrível maturidade de Toscano só permite antever voos mais altos, sendo de assinalar a apetência já demonstrada pelo músico para explorar novos territórios musicais.
O derradeiro dia começa (19h) com o quarteto do vibrafonista Eduardo Cardinho, acompanhado por João Barradas no acordeão “midi” (retribuindo a participação do aqui líder nos Home), André Rosinha (que também integra o projeto Galip) no contrabaixo e Diogo Alexandre na bateria. O grupo apresentará certamente temas do seu segundo disco de originais, “In Search of Light”, editado já este ano pela Nischo. Jazz com traços camerísticos, de grande riqueza harmónica, onde a escrita se verte em coesão, quer no plano da dinâmica do grupo, que ao nível da componente improvisacional.
O evento barreirense fecha em alta (21.30h) com a atuação dos esteticamente inclassificáveis TGB, grupo que reúne três incríveis forças criativas da nossa praça: o guitarrista Mário Delgado, o tubista Sérgio Carolino e o baterista Alexandre Frazão. Acabam de lançar o disco “III” na Clean Feed, mais uma etapa de um processo de simbiose que vai muito além da exploração de uma inusual combinação instrumental. Classificar a música que fazem como uma mistura de isto com aquilo, mais aqueloutro, não pode ser senão redutora. Caso em que o todo vale mais do que a soma das partes. A não perder.
Dizem os organizadores que o Jazz no Parque pretende ser uma «festa de jazz de acesso livre e gratuito». Aplauda-se a iniciativa, pelo exemplo que dá na promoção da cultura, em geral, e do jazz, em particular.