Imaxinasons
Cuba, rock e mais e mais ainda
Na sua 13ª edição, o festival de jazz de Vigo, na Galiza, foca-se no jazz latino, sobretudo o afro-cubano, e no jazz-rock, um e outro com propostas menos óbvias. A presença de músicos da região é reforçada, mas desta vez são apenas dois os intervenientes portugueses: Carlos Bica, que tocará com os seus Azul, e Bruno Pedroso, como membro do Abe Rábade Trio. Os cabeças-de-cartaz são Alexander von Schlippenbach (foto acima) com “Monk’s Casino”, uma releitura de toda a obra escrita por Thelonious Monk, e Uri Caine em trio de piano jazz com elementos de soul, rhythm & blues e gospel.
Erro de “casting” ou a constatação de que os projectos levados pelos cabeças-de-cartaz da edição de 2017 do Imaxinasons têm uma importância que ou resiste ao tempo (o “Monk’s Casino” de Alexander von Schlippenbach foi lançado há 12 anos, em 2005) ou não se deixa diminuir face a outras criações mais badaladas (a actividade como pianista de Uri Caine foi eclipsada pelas recriações trans-idiomáticas que, na qualidade de arranjador, fez a partir de Mahler, Bach, Mozart, Verdi e outros compositores clássicos)? O risco assumido pela percussionista Lucía Martínez, a programadora do festival desde o ano passado, era enorme, mas parece ter uma igualmente muitíssimo boa justificação…
O mesmo Schlippenbach que improvisou sobre as séries dodecafónicas que nortearam o rígido trabalho de escrita de Schoenberg, Webern, Stockhausen e Boulez mudou, também, a forma como no jazz se entende a interpretação do espólio dos grandes nomes que fizeram a sua história (no caso, o de Thelonious Monk), numa ultrapassagem das supostas barreiras de estilo e tendência. O músico alemão é um dos baluartes do free jazz europeu e um dos membros do quinteto que leva a Espanha, o trompetista Axel Dorner, movimenta-se nos circuitos mais experimentais da livre-improvisação, enquanto Monk é um símbolo da linha estética hoje dominante, a do bop: cruzar esses âmbitos tem um alcance simbólico que só podia perdurar. As repercussões desse triplo álbum continuam a fazer-se sentir e o mesmo ainda não tinha sido apresentado ao vivo na Galiza. Tornava-se urgente fazê-lo, para mais num país em que o jazz vive ainda enormes divisões estéticas e no contexto de um evento que desde sempre as tem procurado diluir. Vai acontecer a 8 de Julho, último dia do 13º Imaxinasons.
A 30 de Junho, abrindo o mesmo, o que Caine fará só pode ser entendido como parte de uma lógica global, dela na verdade não podendo ser separada. “Calibrated Thickness”, o mais recente CD do Uri Caine Trio (em Vigo com o contrabaixista Kenny Davis no lugar de Mark Helias) responde ao mesmo conceito que está aplicado, por exemplo, em “The Othello Syndrome”. A inclusão nas composições do líder, e nas versões realizadas de “standards” como “Automn Leaves”, “On Green Dolphin Street” e “I Thought About You”, de materiais provenientes de toda a tradição musical afro-americana (gospel, soul, funk, rhythm & blues, etc.), que não apenas a do jazz, estão em linha com os tratamentos influenciados pelo rock, pela electrónica experimental, pelo klezmer, pelo drum ‘n’ bass, pelo hip-hop e muito mais a que sujeitou Beethoven, Wagner, Schumann e especialmente, ou pelo menos com especiais resultados, Gustav Mahler – assim aplicando as premissas do pós-modernismo e escandalizando os puristas da “música séria”. Este é o mesmo Uri Caine que improvisa no cravo sobre partituras de música antiga. Apenas a perspectiva muda.
Pelo meio, a insistência do programa em formações de jazz latino ou que combinam o jazz com o rock não corresponde simplesmente a uma tentativa de abranger outros públicos. O galego Marosa Jazz Project, que fechará a noite de 30 de Junho, incorpora o vibrafone de Israel Arranz num tipo de jazz, o de influência cubana, que habitualmente o exclui, com todas as diferenciações desse modelo que desse factor decorrem. A 1 de Julho, o duo Two in the Mirror de Noelia Álvarez (voz) e Paco Dicenta (baixo eléctrico, “loops”) apresentará uma síntese essencialista, ou seja, reduzida ao seu mínimo denominador comum, das músicas urbanas de gestação africana – evidenciando que também o rock nasceu dos blues negros. No dia 2, o francês Marc Ducret, com o apoio do contrabaixista Bruno Chevillon e do baterista Eric Echampard, leva o guitarrismo híbrido de jazz e rock que o caracteriza a desfechos que aproveitam algumas apropriações da música de câmara.
Mais adiante, a 6 de Julho, o Alejandro Vargas Trío trata a tradição afro-cubana a partir do ponto de vista (ou mais exactamente, de audição) do free jazz, com referências composicionais da música de câmara. Natural de Cuba e um conhecedor, em primeira mão, do folclore da sua pátria, para além de ter um trajecto que passou por colaborações com Chucho Valdés e os Irakere, o vanguardismo minimalista e de raízes populares professado por Vargas resulta numa música original, bem suportada pelo contrabaixo de José Manuel Díaz e L.A.R. Legido. No dia 7, os Azul de Carlos Bica interpretam aquele que será, porventura, o seu disco mais marcado pelo rock (o novo “More Than This”), com a guitarra de Frank Mobus a explorar os limites da distorção. A propósito: Bica é um dos dois únicos portugueses este ano convidados pelo Imaxinasons, numa drástica diminuição da presença do jazz nacional no seu elenco. No mesmo dia, o percussionista cubano Yuvisney Aguilar, cujo universo vai do latin jazz ao afro-beat e a misturas de jazz com flamenco, homenageará Gonzalo Villar, responsável do bar viguense onde decorriam os concertos “fora de horas” do festival, o Xancarajazz, há uns meses falecido.
A fusão é ainda o território de acção dos galegos Electric Succory, que a 8 propõem um jazz eléctrico repleto de explorações rítmicas, harmónicas e melódicas. A temática conclui-se com a prestação – já a bater na meia-noite da última sessão do Imaxinason – dos recém-formados ESD de Xan Campos, que para o efeito troca o seu habitual piano por teclados eléctricos e electrónicos, para a elaboração de uma música de carácter psicadélico com duas guitarras (uma delas a de Virxilio da Silva, já bem conhecido do lado de cá da fronteira) e bateria.
Ainda assim, o grosso do cartaz é constituído por propostas ora vindas do “mainstream” (signifique o que significar esta denominação cada vez mais incorrecta), ora de projectos com uma índole mais experimental. Na primeira vertente está o Abe Rábade Trio, com actuação a 1 de Julho, no qual encontramos Bruno Pedroso, o outro português do certame. Pianista de superiores capacidades, Rábade é um dos músicos espanhóis mais presentes no jazz de Portugal, a par de Perico Sambeat e Jesus Santandreu, e aquele que integra mais músicos do nosso país nos seus grupos. Segue-se, no dia 2, o David Puime Trío, com um repertório fiel à tradição guitarrística de Jim Hall e Wes Montgomery. A 4, vez para o Javier Marcos Quinteto, com o cantor-líder a inscrever-se na herança do “crooning”, ainda que com claras influências do cool. O dia 6 de Julho traz consigo o jazz elegante e muito atmosférico do Alfonso Calvo Septet.
As abordagens mais desalinhadas e exploratórias iniciam-se, a 3 de Julho, com o solo Cirerot do catalão, residente em Lisboa, Albert Cirera, numa abordagem abrupta («selvagem», diz o próprio) da melodia. A utilização de técnicas extensivas no manejo dos saxofones tenor e soprano levam-no para o domínio da música improvisada sem idioma definido. É um solo também, mas de guitarra e electrónica, que Santiago Quintáns protagoniza, sob a designação ARK, no dia 4. “Escultura em movimento” e “espaço sonoro como zona de jogo” – assim é apresentado este projecto pelo músico espanhol radicado nos EUA. A 5 será a vez de Julián Elvira dar a ouvir o instrumento que inventou, a flauta pronomo, bem como o que faz com outras de registo grave, indo do contrabaixo ao octobaixo. Elvira especializou-se na interpretação de obras contemporâneas da chamada “new complexity” e em particular do compositor Brian Ferneyhough. Não é propriamente jazz, mas interessa a este conhecer o trabalho de ponta que se vai desenvolvendo à sua volta.
Muitos e atraentes motivos, em suma, para dar um salto até Vigo…