Guimarães Jazz
Guimarães à frente
Archie Shepp (foto acima) é o nome em grande destaque do festival da cidade-berço deste ano. O programa faz-se de regressos, algo de estranho quando há tanta música por ouvir, mas tem argumentos fortes. Um especial é “Fats Waller Dance Party” de Jason Moran, de volta, mas com projecto muito diferente…
Chegou aquela época em que que preciso de planear a viagem a Guimarães. O festival de jazz da cidade assim o obriga, mas a ida à “cidade-berço” é muito mais do que ir ouvir concertos: toda a gente que já lá foi passar o Verão de São Martinho sabe que a música à noite é uma forma de fechar grandes dias numa das cidades mais extraordinárias do País, com uma oferta cultural de enorme qualidade muito para além do jazz, gastronomia excessiva, da pastelaria à restauração, alojamento aprazível... e vida. Em Guimarães vive-se bem: a escala da cidade humana e confortável, magnificamente arranjada, com boa vida diurna e nocturna, não pára de nos provocar em pensamento: «Porque é que não ficas cá?»
A edição deste ano do Guimarães Jazz está planeada e apresenta-se consentânea com aquilo que têm sido as ideias de Ivo Martins, o seu programador desde há 20 anos: uma aposta no jazz em que o risco recai apenas na execução da música, na improvisação, e que não questiona as suas fronteiras e a sua forma. Tem sido este o molde usado nos últimos anos, suportando um festival que enche um grande auditório de uma pequena cidade.
Destaque inevitável
Com muito poucas novidades, a programação deste ano faz-se de regressos: re-ouvir e rever músicos que já passaram por Guimarães no passado, uma opção por vezes difícil de perceber com a quantidade de música nova que está por ouvir. Para quem pode ir aos dois fins-de-semana a opção é fácil. Para quem só poderá ir a um a escolha também é facílima: a segunda semana, pois vai poder ouvir Archie Shepp. Este é, para mim, o ponto alto da edição de 2015, um saxofonista que admiro muitíssimo e que tocou pouquíssimo em Portugal (Casa da Música em 2006, Algarve em 2010).
Reconhecendo que a afirmação seguinte tem muito de pessoal, Shepp é um dos gigantes do saxofone, a par de Coltrane, e os seus discos iniciais (com Bill Dixon em 1962) na Impulse (de 1965 até “Kawanza” de 1972) e o período da Steeplechase (“Goin’ Home”, “Trouble in Mind” e “Mamma Rose”) são discos fundamentais em qualquer discografia jazzística que se preze. O saxofonista americano nunca foi de fazer cedências e os seus projectos têm sempre uma enorme consistência musical (mesmo a tocar Charlie Parker em “Lady Bird” é extraordinário). Revolucionário, profundamente envolvido com os movimentos igualitários dos negros americanos e com a defesa de ideais políticos, Shepp é grande no free, nos blues, no bebop, no modal. Hoje com 78 anos, será um privilégio ouvi-lo em quarteto.
Feito o destaque inevitável, vamos à agenda… A 24ª edição arranca no dia 5 de Novembro com os Oregon de Ralph Towner. Tocaram em Portugal nos anos 1990, em Lisboa e em Guimarães. Towner é um guitarrista excelente, tendo começado a tratar a guitarra de 12 cordas com uma técnica única até então. Desde esse momento a música dos Oregon tem-se mantido relativamente constante e a banda coeso (Towner, MacCandless, Moore, com a saída de Trilok Gurtu e a entrada de Mark Walker), o que justifica algum apagamento por constância. Será certamente um concerto interessante para actualizar o registo mental sobre a música do grupo, sabendo no entanto que o contrabaixo não será tocado por Moore, mas sim pelo italiano Paolino Dalla Porta.
No dia seguinte, 6 de Novembro, ouviremos Brian Blade & The Fellowship Band (Jon Cowherd no piano, Myron Walden no saxofone alto e no clarinete baixo, Melvin Butler nos saxes soprano e tenor, Chris Thomas no contrabaixo e, claro está, Blade na bateria). O último disco do grupo, que regressou à Blue Note, deixou uma boa impressão, com uma música lenta e contemplativa, na qual o diálogo entre os instrumentistas tem tempo e espaço para emergir claramente.
Em festa
O nome do grupo do pianista francês Jean-Christophe Cholet parece um desafio de “scrabble”: Cholet Känzig Papaux Trio. A sua música sofisticada, perto da linguagem inaugurada pelo EST, estrutura-se sobre melodias esquinadas no piano e desenvolvem-se com serenidade, acompanhadas por contrabaixo e bateria. Um concerto para tranquilizar a tarde de sábado dia 7.
À noite a história é outra e Jason Moran regressa a Guimarães depois de ter pisado o palco em 2005 e 2010. O concerto intitulado “Fats Waller Dance Party” vai ser um dos pontos altos deste festival. Moran e uma formação reduzida deste seu novo projecto (Taurus Marteen no baixo, Charles Haynes na bateria, Leron Thomas no trompete e na voz e Lisa Harris a cantar) não irá interpretar o “swing” de Fats Waller num “stride” moderninho. Em vez disso, parte, cola, sobrepõe temas como "Honeysuckle Rose", "Ain't Misbehavin'" ou "Squeeze Me", criando um ambiente festivo, enérgico e, ao mesmo tempo, uma música nova, muito interessante e não revisionista. Um concerto que se antecipa divertido e que promete fechar a primeira semana em festa.
No domingo teremos dois concertos. O primeiro, à tarde, é a habitual apresentação do trabalho dos “workshops” de Taylor Ho Bynum, desta vez em parceria com Tomeka Reid, com os alunos da ESMAE, seguindo-se à noite o projecto Guimarães Jazz / Porta-Jazz, que substituiu a antiga parceria entre o festival e a editora Tone of a Pitch. O grupo que representará o colectivo Porta-Jazz será constituído por José Pedro Coelho nos saxofones, Eurico Costa na guitarra eléctrica, Sylvain Darrifourcq na bateria, Nicolas Canot na electrónica e Eduardo Cunha em “video mapping”.
Uma vida inteira de música
A segunda semana abre com o regresso do trompetista que em 2014 foi igualmente o co-coordenador das oficinas da ESMAE (sempre presentes no Guimarães jazz e na sua missão formadora) e actuou em quarteto. Bynum retorna agora em quinteto com Tomeka Reid no violoncelo, Alexander Hawkins no piano, Neil Charles no contrabaixo e Tomas Fujiwara na bateria. Uma das novas vozes do jazz americano, a sua música soou no ano passado algo fria, mas competente. Estamos curiosos por acompanhar o seu percurso.
A 12 de Novembro outro regresso, o de Joshua Redman. Ouvimo-lo contido e espartilhado em 2014, pelo rigor próprio de tocar com uma orquestra (a Trondheim Jazz Orchestra) e agora iremos ouvi-lo no combo James Farm, com Aaron Parks no piano, Matt Penman no contrabaixo e Eric Harland na bateria. O novo disco, “City Folks”, é bom, misturando o sentimento europeu com a energia americana. Soa mais meloso e previsível do que o habitual em Redman - mais ligeiro -, com melodias fáceis e cantáveis. Mas uma audição atenta também revela um “groove” que ao vivo poderá ganhar calor.
Já referimos que o dia 13 Novembro traz o grande alicerce desta edição do festival: Archie Shepp. Não é um concerto de um nome histórico, é um concerto de um dos grandes saxofonistas da história do jazz que continua em grande e a ser grande. Multifacetado, com um som único. Ainda não podemos confirmar o pianista que acompanhará Shepp (será Tom McClung ou Carl Henry Morisset), mas sabemos que no contrabaixo estará Darryl Hall e que na bateria teremos Steve McCraven. Um acompanhamento que se antecipa capaz, com músicos que nunca estiveram na primeira linha, mas têm uma vida inteira de música e de participações em projectos por vezes de grandes nomes.
O Guimarães Jazz de 2015 fecha a 14 Novembro com o regresso de Maria Schneider e da sua orquestra, que já esteve no Centro Cultural Vila Flor em 2005 e em 2011. É uma grande compositora e arranjadora, com uma escrita fílmica capaz de sugerir ambientes e paisagens. A forma como modela as harmonias e as distribui pelos instrumentos é, talvez, a sua característica mais notável, evitando habilmente o perigo de soarem gordurosas ou açucaradas.
Por todas estas razões – música, cidade, vida –, não deixaremos de recomendar a compra antecipada de bilhetes, pois nas últimas edições a sala, apesar de grande, tem esgotado. E essa é uma das grandes medalhas deste festival.