The Hatch Expansion: “Texas Edition” (Astral Spirits / Sonic Transmissions)

The Hatch Expansion: “Texas Edition” (Astral Spirits / Sonic Transmissions)

Astral Spirits

António Branco

Em 2019, a saxofonista dinamarquesa (radicada na Noruega) Mette Rasmussen e o guitarrista francês Julien Desprez, enquanto duo The Hatch, decidiram alargar o seu vocabulário e explorar novas possibilidades sónicas. Assim surgiu The Hatch Expansion, que acaba de editar na Astral Spirits (em parceria com a Sonic Transmissions) o álbum “Texas Edition”, gravado em Houston e Austin, rico em paisagens contrastantes, como o estado norte-americano. A jazz.pt já o escutou.

O Texas é um estado norte-americano feito de contrastes. Se nas regiões mais a norte e a oriente existem rios, lagos e florestas, e um clima propício às atividades agrícolas, as regiões sul e oeste são mais áridas, em algumas partes mesmo desérticas. A geografia não explica a música, mas parece ajudar. Foi neste contexto que o duo The Hatch, formado pelo guitarrista francês Julien Desprez e pela saxofonista dinamarquesa (radicada em Trondheim, Noruega) Mette Rasmussen decidiram expandir os horizontes do seu vocabulário, conferindo-lhe toda uma nova dimensão coletiva e orquestral. Oriundos de diferentes culturas, e com personalidades musicais também marcadamente distintas, Desprez e Rasmussen decidiram desaguar as suas abordagens numa música que assenta fundamentalmente em três pilares: o jazz europeu mais avançado, as especificidades do jazz escandinavo, e a tradição do free jazz norte-americano. Cartas dadas, agora é só baralhar.

Baseado em Paris, Julien Desprez é um notável improvisador e alquimista sonoro, um verdadeiro dinamitador de muros, navegando entre o jazz europeu e o americano e admitindo múltiplas referências vindas dos campos (vastos) do rock e da música experimental. Questionando se Desprez será um guitarrista, o jornalista David Cristol, na jazz.pt, definiu-o como «um percussionista e intérprete multidisciplinar que utiliza, entre outras coisas, uma guitarra e todo o tipo de dispositivos para atingir os seus fins.» Presença habitual em Portugal, lidera os Abacaxi, co-fundou o Collectif Coax e integra formações de relevo como a Exploding Star Orchestra de Rob Mazurek e o excelente projeto Seven Storey Mountain de Nate Wooley. Colaborou com Luís Lopes no álbum “Boa Tarde”, editado pela Shhpuma em 2018, e já o ouvimos também com músicos tão díspares como Mats Gustafsson, Han Bennink, Louis Sclavis, Edward Perraud, Benoît Delbecq, ou os Tortoise, entre outros.

Talentosíssima saxofonista, Mette Rasmussen centra-se sobretudo na improvisação livre. A sua música tanto pode ser nítida e hipnotizante (por vezes mesmo comovente), como rugosa e flamejante, sempre urgente, não deixando pedra sobre pedra. Herdeira clara de Albert Ayler e da “estética do grito”, o seu som distingue-se muitas vezes pelo uso que faz do registos mais agudos e por surpreendentes multifónicos, abdicando do fraseado para se adentrar na exploração de texturas, tirando partido das limitações físicas do seu instrumento, recorrendo ou não a preparações. Para além do seu trio Riot, tem tocado com músicos como Chris Corsano (“All The Ghosts At Once” é imperdível, tal como o é o mais recente “Crying in Space”), Alan Silva (com este não no contrabaixo, mas no sintetizador), Ståle Liavik Solberg, Pat Thomas, Rudi Mahall, Tobias Delius, Wilbert De Joode e Axel Dorner, para apenas mencionar alguns. Integra a Supersonic Orchestra de Gard Nilssen, que encerrou a edição de 2023 do Jazz em Agosto na Fundação Calouste Gulbenkian.

Em 2019, o duo editou na Dark Tree um aclamado álbum inaugural, homónimo, no qual ofereceu-nos um música cerebral e urgente, sobretudo muito expressiva; os dois músicos reagem e respondem um ao outro com uma agilidade espontânea, seja em passagens vertiginosas, padrões coloridos ou melodias mais contemplativas. Em junho desse mesmo ano, Desprez e Rasmussen embarcaram numa digressão norte-americana durante a qual se aventuraram pelo Texas e decidiram expandir a formação e explorar todo um alargado leque de novas possibilidades. Assim surgiu The Hatch Expansion. A dupla reuniu duas orquestras ad hoc em Houston e em Austin, onde pontificaram alguns dos melhores improvisadores de cada cidade: em Houston responderam à chamada Tom Carter, Sonia Flores, Ruth Langston, Keisha Cassell, John Alan Kennedy, Misha Tsypin e Rachel Orosco; em Austin, Lisa Cameron, Sarah Ann Philips, Jonathan Horne, Carl Smith, Henna Chou, Joshua Thomson e o nosso bem conhecido Ingebrigt Håker Flaten.

O resultado das experiências texanas está vertido no álbum “Texas Edition”, agora editado com selo da Astral Spirits – em parceria com a norueguesa Sonic Transmissions. Tudo é aumentando, não apenas a dimensão do efetivo, mas essencialmente a riqueza da massa sonora, tanto no plano coletivo como das contribuições individuais para o cômputo, sem que se descortinem protagonismos ou subordinações. A música da dupla adquire assim uma outra, e muito significativa, escala. Escutamos quatro peças a rondar os vinte minutos de duração cada, duas gravadas em Houston e outras tantas em Austin. A música constrói-se em camadas, que se sobrepõem, dobram, entrecruzam e fraturam, quais placas tectónicas em subliminar mas permanente movimento. Escutamos uma grande variedade de ritmos, sons esdrúxulos, jogos de polifonia, com os músicos a recorrerem amiúde a técnicas menos convencionais.

Logo aos primeiros segundos de “Houston Part 1”, os instrumentos começam a chegar, lado a lado no palco, porém parecendo que oriundos de lugares díspares. Fragmentos. Uma voz em registo operático, as cordas, os espasmos do saxofone, a percussão detalhada, a guitarra aglutinadora. Peças de um puzzle que procuram encaixar-se, para logo demandar noutra direção. Momentos de maior ferocidade alternam com outros de onde emerge uma brisa melódica, ainda que ténue. Uma voz gutural vocifera. Paira uma nuvem carregada eletricamente. Procuramos, como em Tanizaki, «a luz na sombra». “Houston Part 2” começa mais esparsa, logo adquirindo uma densidade sufocante, com guitarra carregada, a bateria a borbulhar em lume alto, a voz que assombra. Uma passagem dominada pelas cordas funciona como refrigério; é neste húmus que brotam do saxofone notas mais claras. Há sons que remetem para uma floresta ignota. As vozes dialogam. Sensivelmente a meio da peça tudo serena, o saxofone de Rasmussen adquire maior limpidez, afagado pelas cordas, tendendo para um silêncio inquieto.

Em “Austin Part 1” regressa a música fragmentada, com os diferentes instrumentos a aproximarem-se e distanciarem-se, uns proeminentes enquanto outros ocupam interstícios, mais abertos do que noutras peças, criando uma atmosfera de tensão latente, cuja resolução vai sendo adiada, deixando quem escuta sem perceber para onde a música evolui. Ninguém estaria à espera que contrabaixo e bateria se entregassem, em dado momento, a um groove que serve de rampa de lançamento para o grupo se aventurar noutros territórios. Com a peça no seu último terço, a música adquire uma toada lamentosa, que, a espaços, explode. Em “Austin Part 2” as características da música feita em conjunto não diferem muito daquilo que a formação propôs na primeira parte, erguendo aquilo que parece ser uma macroestrutura que se divide em diferentes secções, umas mais abrasivas e outras planantes, por vezes em evoluções rápidas, enquanto noutras de forma mais paulatina. No final, tudo converge para uma misteriosa tranquilidade.

“Texas Edition” é um álbum rico e desafiante e que acrescenta um novo capítulo ao percurso de Julien Desprez e Mette Rasmussen enquanto dupla criativa.

 

 

  • Texas Edition

    Texas Edition (Astral Spirits)

    The Hatch Expansion

    Mette Rasmussen (saxofone alto); Julien Desprez (guitarra elétrica) + The Hatch Expansion Houston Orchestra: Ruth Langston (violoncelo); Keisha Cassell (violino); Tom Carter (guitarra); John Alan Kennedy (percussão, feedback de bateria); Misha Tsypin (voz); Sonia Flores (contrabaixo); Rachel Orosco (som, luz, efeitos visuais); The Hatch Expansion Austin Orchestra: Carl Smith (clarinete baixo); Henna Chou (violoncelo); Jonathan Horne (guitarra); Sarah Ann Philips (piano); Joshua Thomson (saxofone alto); Ingebrigt Håker Flaten (contrabaixo); Lisa Cameron (bateria)

Agenda

04 Outubro

Carlos Azevedo Quarteto

Teatro Municipal de Vila Real - Vila Real

04 Outubro

Luís Vicente, John Dikeman, William Parker e Hamid Drake

Centro Cultural de Belém - Lisboa

04 Outubro

Orquestra Angrajazz com Jeffery Davis

Centro Cultural e de Congressos - Angra do Heroísmo

04 Outubro

Renee Rosnes Quintet

Centro Cultural e de Congressos - Angra do Heroísmo

05 Outubro

Peter Gabriel Duo

Chalé João Lúcio - Olhão

05 Outubro

Desidério Lázaro Trio

SMUP - Parede

05 Outubro

Themandus

Cine-Teatro de Estarreja - Estarreja

06 Outubro

Thomas Rohrer, Sainkho Namtchylak e Andreas Trobollowitsch

Associação de Moradores da Bouça - Porto

06 Outubro

Lucifer Pool Party

SMUP - Parede

06 Outubro

Marta Rodrigues Quinteto

Casa Cheia - Lisboa

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