Susan Alcorn / José Lencastre / Hernâni Faustino: “Manifesto” (Clean Feed)
Clean Feed
O saxofonista José Lencastre e o contrabaixista Hernâni Faustino, dupla que se conhece bem de outros contextos, juntaram-se à norte-americana Susan Alcorn, exímia improvisadora de guitarra pedal steel, instrumento de sonoridade especial. O resultado é o álbum “Manifesto”, onde coabitam passagens intensas, texturas abstratas e momentos de uma surpreendente leveza. Tem selo da Clean Feed e a jazz.pt já o escutou.
O termo “manifesto” é geralmente tomado como uma declaração pública em que se expõem os motivos que levaram à prática de certos atos que interessam a uma coletividade, ou, no campo das artes, uma obra programática de uma escola ou movimento artístico. À sua escala é exatamente isso que este álbum é: uma proposta de características muito particulares e que desbrava novos territórios, até pela inaudita configuração instrumental da formação. Susan Alcorn, nas guitarras pedal steel (sobretudo) e lap steel, e os portugueses – que se conhecem muito bem de várias aventuras musicais conjuntas – José Lencastre, nos saxofones alto e tenor, e Hernâni Faustino no contrabaixo e no baixo elétrico.
Susan Alcorn trouxe as guitarras pedal steel e lap steel para os universos da improvisação, significativamente distantes do papel tradicional limitado que lhes estava cometido no country e western (por onde iniciou a carreira, sublinhe-se). Alcorn tem vindo a expandir o vocabulário destes instrumentos de sonoridade peculiar, aportando elementos da música erudita do século XX, do jazz mais estimulante e também de músicas de vários latitudes. «Entendo o instrumento que toco não como um objeto a ser dominado, mas como um parceiro com o qual partilho com o ouvinte um significado e, espero, uma profunda consciência de cada momento frágil em que estamos juntos. É desta dinâmica que tento estar ciente tanto na minha escrita quanto nas minhas performances», explicou a própria em entrevista. Recentemente, escutámo-la no excelente “From Union Pool”, com o clarinetista Patrick Holmes e o baterista Ryan Sawyer.
José Lencastre é reconhecido como um músico versátil, capaz de se movimentar com igual mestria em diferentes tabuleiros sonoros. O seu saxofonismo incorpora e processa elementos derivados do free jazz e outros provenientes de uma improvisação livre de linguagens, em grupos como Nau Quartet, Anthropic Neglect, Spirit in Spirit (atenção ao recente “Cinematico”) , SPOS ou Common Ground. Em 2022, deu à luz o álbum a solo “Inner Voices” na editora Burning Ambulance. Músico autodidata, Hernâni Faustino integrou diversas bandas de rock na década de 1980; na década de 1990 começou a tocar contrabaixo e passou a dedicar-se apenas à música improvisada. Mapear o seu trabalho não é tarefa fácil, dada a quantidade de projetos em que toca. Foi um dos fundadores, em 2007, do RED Trio, com o pianista Rodrigo Pinheiro e o baterista Gabriel Ferrandini, mas também nos Clocks & Clouds, Lisbon Free Unit, o trio com Lotte Anker, o quinteto de Nobuyasu Furuya, o quarteto Refraction de Rodrigo Amado, o trio Volúpias de Gabriel Ferrandini, formações lideradas pelo guitarrista Luís Lopes ou o recente trio com o violoncelista Daniel Levin e o pianista Rodrigo Pinheiro (“Rhizome” demanda audição atenta), além do trabalho que desenvolve a solo.
Lencastre e Faustino têm amiúde partilhado palcos e estúdios, em vários contextos sónicos e integrando diferentes projetos. «Temos muitas horas tocadas em conjunto, e isso como que cria uma linguagem comum que desenvolvemos e conhecemos, mas que está em constante movimento de evolução e se expressa diversamente sempre que nos reencontramos para tocar», começa por dizer José Lencastre à jazz.pt. Cedo descobriram que tinham em comum, além do gosto pelo jazz e pela música improvisada, uma grande admiração pela obra de Susan Alcorn. Em agosto de 2022, Alcorn tocou em Lisboa, no Jazz em Agosto da Fundação Calouste Gulbenkian, integrando o grupo Seven Storey Mountain de Nate Wooley, e José Lencastre convidou-a para gravar em trio com saxofone e contrabaixo. «Ela foi muito simpática e recetiva a essa ideia, e então a partir daí falei com o Hernâni e começámos a pensar em conjunto qual a melhor forma de o fazermos. Ainda ponderámos incluir bateria mas acabámos por nos decidirmos por este formato em trio», revela Lencastre. «Tenho tocado e gravado bastante durante estes últimos anos com o José Lencastre em várias formações e contextos, mas acho que a música do “Manifesto” é especial. Talvez devido ao facto de ambos sermos grandes admiradores da música da Susan Alcorn e também devido ao tipo de instrumentação utilizada», sublinha Hernâni Faustino.
A sonoridade da guitarra pedal steel (e da lap steel numa peça) trouxe desafios especiais à concretização desta geometria sónica: se a ligação entre saxofone e contrabaixo é telepática, a guitarra veio trazer toda uma nova dimensão que o grupo estava ávido de explorar. «A Susan tem umas características muito peculiares na forma como toca e improvisa. A sua distinta interação connosco e a sonoridade do seu instrumento enriqueceu bastante a ligação entre o contrabaixo e o saxofone», reforça Faustino. O saxofonista acrescenta: «O facto também de não haver bateria ou percussão, fez com que essa nossa ligação musical acontecesse noutro patamar.» Registado numa manhã desse agosto nos estúdios Namouche por Joaquim Monte (o que quer dizer muito), “Manifesto” traz uma música – completamente improvisada e sem qualquer pré-preparação («pelo que me lembro, combinámos apenas previamente que o Hernâni levaria também o baixo elétrico», conta Lencastre) – que se ergue da fecunda interação entre os três músicos, cruzando uma narrativa melódica com passagens angulares e de maior abstração.
O que escutamos em "Manifesto", editado pela Clean Feed, é rico e diverso em texturas, que tanto podem ser fulmíneas, mas também de uma surpreendente leveza. «Tudo fluiu de forma natural, parece-me. O nosso trabalho anterior em conjunto serviu de base, digamos assim, para desenvolvermos a música da forma que o fizemos com a Susan», explica Lencastre. Ideia que é corroborada pelo contrabaixista: «Foi uma sessão de gravação que correu bastante bem, o entendimento entre nós foi logo imediato e muito espontâneo, nunca foi preciso falar sobre o que iríamos tocar. Bastou apenas ter ouvidos atentos e tocar»; e completada pelo saxofonista: «Algo que me fascina, e sobre o qual já falei com o Hernâni, é tentar chegar a esses momentos de forma menos óbvia: por exemplo, não criar intensidade pelo facto de tocar mais alto ou começar a berrar para dentro do saxofone.» José Lencastre revela ainda um episódio que define bem o que aconteceu durante a sessão de gravação: «Lembro-me de a Susan mencionar que quando sentia que estava tudo muito “certinho”, ela gostava de ir contra isso criando alguma tensão.»
“The Poet” chega com a suavidade textural da guitarra pedal steel e as notas pendulares do baixo elétrico; o saxofonista não destoa e aporta serenidade; e os três constroem uma peça lenta e de ambiência misteriosa, que se vai densificando. As linhas desenhadas pelos três instrumentos tornam-se progressivamente mais grossas, com Lencastre a meandrizar sobre a base urdida pelos outros dois. “Two Distant Realities” é mais nervosa; Lencastre sopra flamejante com Alcorn e Faustino em ebulição; tudo se aquieta e os três começam uma digressão conjunta, próximos, rumo ao silêncio. Peça soberba, “Sombra” começa com notas encantatórias de pedal steel, que os outros dois músicos interpelam, vigilantes, como que atentos ao mais pequeno movimento numa paisagem desértica. O saxofone (aqui o tenor) desenha uma bela linha melódica. A peça parece querer adquirir tração, o que não acontece verdadeiramente, com os instrumentos a prosseguirem tranquilos os seus caminhos. “Interalia” é de uma beleza esdrúxula, com os três instrumentos a vaguearem como fantasmas. Na parte final tudo se fragmenta e se torna ainda mais espectral.
Outros dos momentos especiais do disco acontecem em “Saturnalia”, de início difuso, qual banda sonora de um filme sci-fi imaginário. O saxofone planante de Lencastre, a guitarra económica, o contrabaixista solidamente discreto. Este será provavelmente o melhor exemplo do quão e imagética a música do trio pode ser. Em pleno contraste com o título, “Manhã Louca” é momento maior de tranquilidade; os três músicos vão desenvolvendo paulatinamente as suas linhas, geralmente não muito distantes uns dos outros. Alcorn, aqui recorrendo à lap steel, faz o seu instrumento percorrer uma ampla gama de sons; Lencastre sopra o tenor com foco e assertividade e Faustino propõe uma pulsação primordial que tudo sustenta.
Susan Alcorm, José Lencastre e Hernâni Faustino fazem de “Manifesto” uma verdadeira declaração de princípios. Um belo álbum que reclama vagar para se desvendar e que lança pistas para futuras explorações.
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Manifesto (Clean Feed)
Susan Alcorn / José Lencastre / Hernâni Faustino
Susan Alcorn (pedal steel guitar, lap steel guitar); José Lencastre (saxofones alto e tenor); Hernâni Faustino (contrabaixo e baixo elétrico)