Zé Eduardo & Orquestra Jazz de Matosinhos: “Alter Ego” / Paulo Moura: “Tocamos O Que Nos Apetece” (CARA / OJM)
CARA / OJM
Desenvolvendo atividade em várias áreas, a Orquestra Jazz de Matosinhos é uma das mais importantes forças criativas do jazz nacional. Dirigida pelo histórico Zé Eduardo, acaba de lançar “Alter Ego”, com composições do contrabaixista (e não só). O livro “Tocamos O Que Nos Apetece”, da autoria do jornalista e escritor Paulo Moura, passa em revista os 25 anos de uma jornada plena de aventuras. A jazz.pt já os escutou e leu.
A história da relação entre Zé Eduardo e a Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM) começa a contar-se muito antes de esta existir: remonta ao momento em que Pedro Guedes, prestes a rumar a Nova Iorque para estudar jazz, enquanto passava as férias de verão em Palma de Maiorca, assiste a um concerto da big band do Taller de Músics de Barcelona, dirigida por... Zé Eduardo. Mas há outros momentos, muito anteriores, que também concorrem para esta história: desde logo, a parceria que, em dado momento, o contrabaixista estabeleceu com Mário Barreiros, baterista, guitarrista, produtor – ele próprio figura fundamental do jazz nacional – que se revelou seminal para o processo que transformaria o restaurante Churrasquinho num vibrante local de concertos, ensaios, jam sessions, e palestras sobre jazz. Aquele espaço tornara-se, como bem sublinha o jornalista e escritor Paulo Moura em “Tocamos O Que Nos Apetece” (ver texto infra), um clube de jazz, o único fora de Lisboa, e um ponto de encontro de todos os que gostavam e se interessavam por jazz, um verdadeiro centro de ensino e aprendizagem.
O contrabaixista, compositor, arranjador, pedagogo e agitador cultural, Zé Eduardo, há muito radicado em terras algarvias, é um nome incontornável da história do jazz em Portugal. O seu papel crucial na criação da primeira orquestra exclusivamente de jazz (a Orquestra Girassol), em 1978, e da primeira escola de jazz em Portugal (a Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal) deveria ser objeto de um estudo mais aprofundado, para se aquilatar devidamente o alcance daqueles momentos-chave em tudo o que viria depois. Mas o resultado esse pioneirismo está, meio século volvido, diante dos nossos olhos e ouvidos, vertido numa cena que é pujante e incrivelmente diversa, com muitos músicos de primeira água, muitos festivais e concertos, muitos discos. Muito lhe devemos. Zé Eduardo tem atrás de si um percurso notável, em discos como “Onix” (1984), “Stress” (1987), “Unities” (1988), “Begur” (1990) – é imperioso que a sua discografia pré-Clean Feed seja reeditada –, com o Zé Eduardo Unit em “A Jazzar no Cinema Português” (2002) ou “A Jazzar no Zeca” (2004), no quarteto estelar com Jack Walrath ou no singular projeto Flajazzados, ao lado do saudoso Vítor Reia-Batista, desaparecido em 2018.
Criada em 1997, a Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM) é uma verdadeira instituição do jazz nacional, cruzando ambição internacional com um apurado sentido de responsabilidade local. Apostando em projetos artísticos diversificados, numa atividade formativa permanente e na edição discográfica (própria e outra, bastando lembrar neste último caso a reedição do catálogo da Tone of a Pitch de boa memória), a OJM, dirigida artisticamente por Pedro Guedes (durante muito tempo codirigida por Carlos Azevedo), tem colaborado ao longo do seu percurso com inúmeros nomes de relevo; a lista é interminável e dela constam figuras como Lee Konitz, Carla Bley, Maria Schneider, Kurt Rosenwinkel, John Hollenbeck, Ohad Talmor, Chris Cheek, Jim McNeely, Peter Evans, Rebecca Martin, Larry Grenadier, João Paulo Esteves da Silva, Carlos Bica, Maria João e Luís Figueiredo, entre muitos outros. A parceria que estabeleceu com a Casa da Música, em 2007, tem resultado na apresentação de dois projetos inéditos por ano nesta sala de concertos portuense.
Quase três décadas depois do tal encontro premonitório, a Orquestra Jazz de Matosinhos escancarou as suas portas à música de Zé Eduardo. Para Pedro Guedes, diretor da OJM, «não se pode falar da história das orquestras de jazz em Portugal sem falar do importante papel do Zé Eduardo.» Esta edição é pois um momento especial para a Orquestra: «Representa uma grande honra e felicidade. O Zé Eduardo é uma peça fundamental do desenvolvimento do jazz na península ibérica, enquanto músico, compositor, pensador e pedagogo. Parecia-nos que existia uma grave lacuna no panorama jazzístico ibérico: a falta da existência de um registo fonográfico da sua obra para orquestra de jazz.»
Pedro Guedes conta à jazz.pt o “momento zero” desta parceria virtuosa: «Estivemos reunidas cinco pessoas no CARA: Lucía Martínez, Luís Baptista, José Pedro Coelho, Perico Sambeat e eu. Achámos que era a altura de convidar o Zé Eduardo, através de uma carta-branca musical, perguntando-lhe o que ele queria fazer; logo, alter ego.» Tudo se concretizou num período particularmente difícil, durante o primeiro confinamento provocado por uma pandemia nos virou o mundo às avessas. «O processo foi complicado, dadas as restrições sanitárias que tivemos que acatar. Foi dos primeiros momentos em que voltamos a trabalhar após o primeiro confinamento. Também por esse motivo, teve um significado especial.»
Registado por Mário Barreiros no Centro de Alto Rendimento Artístico (CARA), na Real Vinícola, em Matosinhos, em junho de 2020, “Alter Ego”, com direção musical de Zé Eduardo e interpretação da big band, é o notabilíssimo resultado da coalescência destas duas poderosas forças do jazz nacional. Nos onze temas originais coabitam arranjos que remetem para outros tempos, mas plenos de frescura e vitalidade. Há swing, bossa-nova, bolero; há intervenção política (bendito sejas, Zé Eduardo, por sempre dizeres o que pensas!): uma das grandes surpresas é a inclusão de um arranjo de “A Internacional”, que Zé Eduardo fez questão de incluir no programa, hino socialista escrito em 1888 por Pierre De Geyter, operário anarquista de origem belga fixado com a família na cidade francesa de Lille.
Zé Eduardo faz uso do excecional grupo de músicos que tem à sua disposição para expandir as fronteiras do seu material que aqui conhece toda uma nova dimensão. A jornada começa com “À Bolina”, uma encomenda da OJM e da Câmara Municipal de Matosinhos, tendo o mar como cenário, e logo escutamos o êxtase orquestral, num arranjo vibrante a revelar a oleada articulação entre os naipes e destes com a secção rítmica; um solo de saxofone eleva-se, até reemergir o tutti. “Begur”, peça emblemática do repertório eduardiano, começa com o motivo-base exposto pelo contrabaixo; a melodia de sabor arabizante conhece aqui um soberbo arranjo que lhe confere todo um novo conjunto de possibilidades. “Ambar” exibe todas as pedras judiciosamente dispostas, alimentando os jogos orquestrais, de aproximações e contrastes. A serenidade majestosa de “Rosa Dels Vents”, retirada de “Stress”, álbum de 1987, é um dos momentos onde o trabalho conjunto brilha a grande altura. “Typhoonology” carreia um swing viciante de travo vintage do qual se erguem belos solos, em desafios de parada e resposta.
Pináculo da jornada é a inusitada leitura de “A Internacional”, cujo arranjo Zé Eduardo fez questão de aqui incluir, por entender fazer todo o sentido neste momento do “campeonato”, como se diz nas notas do disco. As nuvens negras que pairam sobre Portugal, a Europa e o mundo provam-no à saciedade. “That’s Hard” vem desanuviar a atmosfera com um arranjo solto e descontraído e novo solo de trombone a chamar a atenção para as qualidades individuais de todos os músicos em presença. Ao perfume de bossa-nova de “Pra Você” – com a guitarra límpida do galego Virxílio da Silva e o piano de Carlos Azevedo em destaque – segue-se o arranjo vibrante de “Ginger”, que exibe o poder da massa orquestral, dele se elevando um solo sucinto, mas especial, de Demian Cabaud. “Cheek” – original incluído em “Onix” – numa leitura que lhe confere uma dimensão diferente, com bons solos a sublinhar o trabalho coletivo. Em “Mauwe” instala-se uma bem-vinda aragem refrescante; Cabaud pega no arco e oferece-nos uma bela melodia. “Coronology”, escrita sob o signo da pandemia então reinante, brinda-nos com um balanço luminoso e uma sucessão de solos como que num aceso despique, encerrando o álbum com os níveis energéticos em alta.
Intemporal e elegantíssimo, “Alter Ego” sobe já ao cume dos discos de ano.
O todo é mais do que as partes
“Tocamos O Que Nos Apetece”, do jornalista e escritor Paulo Moura, é um livro que fazia falta. Nele se conta, em duzentas páginas, a muito preenchida história de um quarto de século da Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM), a partir daquele momento inaugural, estrondoso big bang ocorrido a 30 de janeiro de 1997, dia da primeira apresentação no Heritage Café, em Matosinhos, espaço gerido por um idiossincrático João Vilhena, da Heritage Big Band. Naquela noite, conta-nos Paulo Moura, «era como entrar num filme de Chicago nos anos 1930 e ser, por umas horas, parte desse mundo. O Heritage mantinha a decoração exuberante, a arquitetura aparatosa de um verdadeiro antro boémio.» (Desse grupo inicial de músicos restam apenas três na formação que gravou “Alter Ego” com o contrabaixista Zé Eduardo, em junho de 2020: Pedro Guedes, Mário Santos e Rui Teixeira.) A orquestra continuar-se-ia a apresentar-se quinzenalmente no Heritage até julho desse ano. Em setembro, Pedro Guedes regressaria aos Estados Unidos – onde estivera entre 1992 e 1994 – desta feita para frequentar um curso de pós-graduação em música para cinema e televisão, em Los Angeles, onde ficaria até maio do ano seguinte. Durante esse período, os destinos musicais da big band estiveram (bem) entregues aos cuidados de Carlos Azevedo.
Paulo Moura acompanhou desde cedo vários dos principais protagonistas desta história. É o próprio quem nos esclarece a motivação para lançar mãos à obra: «Escrevi este livro por achar que a Orquestra Jazz de Matosinhos é um fenómeno cultural que merece ser conhecido e compreendido. É um exemplo, uma história apaixonante.» «E a prova de que, neste país, quando se tem talento, energia, dedicação e honestidade, podemos “fazer o que nos apetece”», acrescenta. «Este não é um livro jornalístico. É uma investigação pessoal e um testemunho», refere o jornalista e autor de “Tocamos O Que Nos Apetece”. «Porque, tal como os tempos fracos são afinal os mais fortes na batida do swing, o que dá significado a uma instituição, a uma orquestra, são os momentos em que a sua vida se cruza com as dos indivíduos. Se aloja na sua história pessoal. Eu próprio guardo a OJM no meu património de afeto e memória», sublinha.
Paulo Moura e Pedro Guedes, futuro diretor artístico da OJM, cimentarem a sua amizade em Nova Iorque, onde o primeiro era correspondente do jornal Público e o segundo um estudante de Jazz na New School for Jazz and Contemporary Music.. O trabalho de Pedro Guedes é aqui muito justamente enaltecido. Também o pianista, compositor e arranjador Carlos Azevedo, ele próprio durante largos anos codiretor da OJM (até 2021), salienta o papel de Guedes ao longo de todo este caminho: «O Pedro Guedes é o pai espiritual da orquestra. O que temos hoje deve-se a ele. A prioridade deve ser respeitada. Quando as coisas correm bem, todos dizem que tiveram um papel. Mas o Pedro tinha, desde o início, uma visão.» Pedro Guedes sempre foi um desafiador, alguém que gosta de correr riscos. «Não há nada que me dê mais gozo do que fazer um arranjo dos Queens of the Stone Age.» Quando o maestro Jorge Costa Pinto se mostra avesso ao jazz sem swing e diz que «o swing é a alma do jazz» e não a improvisação (porque, argumenta, «já existe desde o barroco»), Guedes defende que o que atrai os jovens para o jazz é precisamente a improvisação.
Estruturado em cinco partes, “Tocamos O Que Nos Apetece” relata uma longa viagem que começa em Lisboa, em vários clubes e espaços de diversão noturna, nos anos 1920, com a chegada dos primeiros sons aparentados com o jazz; as orquestras de dança; o desdém do Estado Novo pelo jazz; Villas-Boas e o Hot Clube de Portugal, o Clube Universitário de Jazz, de Raul Calado e José Duarte, prontamente fechado pela PIDE em 1961; o Cascais Jazz e o episódio Charlie Haden; a criação da Orquestra Girassol, a primeira orquestra exclusivamente de jazz, em 1978, e da primeira escola de jazz em Portugal (a Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal); os críticos de jazz.
Mas o foco aponta, naturalmente, para o que se passou a norte, com epicentro no Porto. Carlos Azevedo avança algumas explicações: «No Porto, talvez por as coisas serem mais incertas e mais difíceis, sempre houve mais união e mais militância.» E prossegue: «O movimento associativo das bandas filarmónicas é muito maior no norte do que no sul, por exemplo. À volta do Porto é enorme. É por isso que o Porto é pioneiro em muita coisa. A primeira escola superior de música onde nasceu? E o primeiro curso superior de jazz? No Porto, e não é por acaso.» Manuel Guimarães e o “Hot Clube da Boavista”; a Cooperativa Árvore; Avelino Tavares e a revista Mundo da Canção; a música e os escritos de Jorge Lima Barreto; os Mini-Pop; a criação da lendária escola do Churrasquinho que evoluiu e se tornou a Escola de Jazz do Porto; as casas do saxofonista Mário Santos (músico ainda hoje solidamente nas fileiras da orquestra) e de Pedro Abrunhosa; a criação do curso de Jazz na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE); a Casa da Música; a fundação da Associação Porta-Jazz. O livro sublinha a traço grosso, aliás, as virtualidades desse triângulo formado pela OJM, o curso da ESMAE e a Porta-Jazz, pilares centrais da fervilhante cena jazzística portuense da atualidade.
Tanto assim é que confrontado com a questão recorrente de se existe um jazz português, Pedro Guedes, pouco convencido, afirma: «Há de certeza um jazz português. Até um jazz de Matosinhos Ou daquela zona de Matosinhos.» Cidade de mar, pescas e conservas, Matosinhos é hoje uma cidade em expansão, cujo perfil sociológico, e consequentemente político, está a mudar. Um dos testemunhos mais significativos vem da atual presidente da Câmara Municipal, instituição que apoia ininterruptamente a atividade da Orquestra desde 1999 até hoje: «Muito dos que estão a instalar-se aqui são pessoas que não querem bairros sociais, não querem apoios às famílias, não querem subsídios, pagos com os seus impostos.» E como o jazz é sociedade, há que estar atento.
O livro conta com outros depoimentos de responsáveis e músicos (antigos e atuais) da orquestra: Carlos Azevedo, Mário Santos, Andreia Santos – a única música nas fileiras da orquestra (não esquecer Joana Brandão, incansável na comunicação da OJM) –, Paulo Perfeito, João Guimarães, Demian Cabaud, José Luís Rego, Gileno Santana, Jorge Queijo, Jorge Coelho), mas também de investigadores da história do jazz como João Moreira dos Santos, Hélder Bruno Martins e os brasileiros Klênio Barros e Leonardo Pellegrim.
O jazz é uma música eminentemente coletiva e a orquestra um seu símbolo. O guitarrista norte-americano Kurt Rosenwinkel, com quem a orquestra colabora desde 2008, em estúdio (“Our Secret World” chegaria em 2010) e no palco, sublinha a natureza única da OJM: «Quando descobri a Orquestra Jazz de Matosinhos achei-os tão diferentes das outras big bands que eu conhecia.» E prossegue: «Senti que a identidade da banda era muito forte, apesar de trabalharem numa atmosfera calma e distendida. Faziam-no por puro amor à música. Estavam sempre muito presentes para a música. E, ao mesmo tempo, o nível musical era muito elevado: Tinha o melhor de dois mundos.»
O escritor John Litweiler lembrou-nos que a liberdade é uma das características centrais do jazz desde os seus alvores. Tocar o que lhes apetece é disso prova contundente.
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Alter Ego (CARA / OJM)
Zé Eduardo & Orquestra Jazz de Matosinhos
João Guimarães, João Pedro Brandão, Mário Santos, José Pedro Coelho e Rui Teixeira (madeiras); Daniel Dias, Paulo Perfeito, Álvaro Pinto e Gonçalo Dias (trombones); Luís Miguel Macedo, Ricardo Formoso, Rogério Ribeiro e Javi Pereiro (trompetes); Carlos Azevedo (piano); Virxílio da Silva (guitarra); Demian Cabaud (contrabaixo); Marcos Cavaleiro (bateria)
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Tocamos O Que Nos Apetece (CARA / OJM)
Orquestra Jazz de Matosinhos
Paulo Moura