Sam Eastmond: “John Zorn's Bagatelles – Vol. 16” (Tzadik)
Tzadik
John Zorn encomendou ao compositor, arranjador, diretor de orquestra e trompetista britânico Sam Eastmond um mergulho no seu livro de 300 bagatelas. O resultado deste processo de interpelação criativa está em “John Zorn's Bagatelles – Vol. 16”, que evidencia arranjos fulgurantes para um ensemble de 12 músicos. Tem selo da Tzadik e a jazz.pt já o escutou.
O termo “bagatela” vem do latim baga que significa pequeno fardo; a palavra evoluiu para o italiano bagattella que, numa mesma lógica, quer dizer “coisa sem importância”. Em música, uma bagatela é entendida como uma forma composicional curta, de natureza despretensiosa e ligeira, desenvolvida sobretudo no período romântico, embora haja exemplos anteriores, que geralmente não segue um plano formal concreto. Em 1717, o barroco François Couperin compôs “Les Bagatelles” para cravo; no início do século XIX, Beethoven criou as suas “Sete Bagatelas para Piano” (1801-1802). Liszt (adentrando-se na atonalidade), Schubert, Dvořák, Smetana, Sibelius, Saint-Saëns, e, já no século XX, Bartók, Webern e Ligeti também se dedicaram a explorar a forma.
Em 2015, John Zorn (n. 1953) compôs um conjunto com três centenas de bagatelas – cada uma consistindo geralmente em melodias de três linhas – para instrumentação aberta que foi estreado no mesmo ano por uma constelação de figuras como Sylvie Courvoisier, Mark Feldman, John Medeski, Craig Taborn, Uri Caine, Jamie Saft, Marc Ribot, Gyan Riley, Julian Lage, Erik Friedlander, Peter Evans, Jon Irabagon, Jim Black e Ikue Mori, entre outros. É nesse imenso manancial que bebe o compositor, arranjador, diretor de orquestra e trompetista Sam Eastmond, músico baseado em Londres, e que acaba de lançar na Tzadik o álbum “The Bagatelles Vol. 16”, à frente de uma orquestra de uma dúzia de músicos. Este é o seu quinto álbum como líder (o quarto na editora de Zorn). «Trabalho com Zorn desde 2015», diz Sam Eastmond em notas de apresentação do álbum. «É uma honra ter-me tornado um intérprete confiável de seu trabalho e o único artista britânico a ter feito álbuns nas séries Masada e Bagatelles, bem como a única big band a apresentá-las.»
Sam Eastmond tem vindo a desenvolver um interessante percurso, em boa medida ligado ao universo zorniano. A sua principal formação, a Spike Orchestra, já gravou quatro álbuns: “Ghetto” (2014), “Cerberus” (2015), “Binah (2019) – integrando a série Masada de Zorn, com as suas interpretações de “The Book of Angels” e “The Book Beri’ah” – e “Splintered Stories” (2020), um disco preenchido com as suas próprias composições. Apresentou os seus arranjos para o repertório de Masada no festival de música contemporânea de Huddersfield, em 2016, e numa residência durante o London Jazz Festival no londrino Cafe Oto, em novembro de 2021, com a National Youth Jazz Orchestra. Um outro grupo seu, de efetivo mais reduzido, editou em 2019 o álbum “Gulgoleth” na Chant Records e gravou uma apresentação ao vivo em Abbey Road para a série UNAMTrasfrontera (2021). A sua composição “The Pink Shagpile Carpet Story, aka The King of Spank” foi nomeada para os prémios IVOR. Eastmond contribuiu com um capítulo para “Arcana IX: Musicians on Music” e toca trompete na Union Division do guitarrista Moss Freed. Integra ainda os Toru, coletivo de improvisação livre que lançou mensalmente um álbum com material inédito, até que a pandemia ditou a sua lei.
John Zorn compôs o seu “The Book of Bagatelles” como construções que os músicos podem interpelar livremente e explorar segundo uma vasta gamas de possibilidades, linhas de pensamento, complexidade, justaposições e expansões. Sam Eastmond avançou resolutamente para enfrentar a tarefa: «Zorn enviou-me o “The Book of Bagatelles” em janeiro de 2021 e, em novembro de 2022, enviei de volta o meu álbum misturado.» Este foi um momento decisivo para o trabalho do britânico: “The Bagatelles Vol. 16” é nova montra para a apropriação aventureira e estimulante que faz do material composto por Zorn. O próprio explica porquê: «Os Masada de John Zorn e a sua série Tzadik Radical Jewish Culture mudaram a minha vida como ser humano, como judeu, como compositor – ressoando em mim de uma forma como nada o havia feito antes.» «Acho importante que o meu trabalho reflita o que sou e contenha todas as facetas que compõem a minha identidade. John Zorn mostrou-me uma forma de o manifestar», acrescenta Eastmond.
Através dos arranjos para este ensemble de uma dúzia de músicos – para os quais confluem uma multiplicidade de estilos, do jazz à improvisação, passando pelo avant-rock e pelas tradições clássicas modernas – Sam Eastmond transcende fronteiras e insufla a música de Zorn com um novo ar. «Este álbum representa o culminar do meu trabalho com Zorn e de todo o meu trabalho enquanto músico – incorporando tudo o que aprendi e canalizando-o para este conjunto de novas músicas.» Apesar da ampla gama emocional que os arranjos espelham – do catártico ao melífluo – fica uma sensação de coreografia, um fio contínuo, ainda que serpenteante, que orienta a escuta e espoleta sinapses. «Passei meses com o livro todo, imergindo na nova linguagem de Zorn: esboçando ideias, procurando compreendê-la – acrescentando contrapontos e linhas de baixo, testando limites, extrapolando a harmonia, deixando que as melodias me contassem como funcionavam, em que contextos se encaixavam ou lutaram contra», explica Eastmond.
Os desafios com os quais se defrontou foram de vária ordem, desde logo a constituição da formação mais adequada para expor a sua visão. «Formar uma banda capaz de enfrentar os desafios únicos colocados pelas Bagatelles foi crucial», admite. «Imaginei formar uma banda de pequenos grupos guerrilheiros que pudessem atacar e depois fundir-se numa força maior.» Eastmond densifica a ideia: «Queria um grande ensemble que pudesse mover-se perfeitamente entre grupos instrumentais fluidos e intercambiáveis e então fundir-se numa força aterrorizante e avassaladora.» Selecionou cuidadosamente os músicos alinhados com a linguagem das Bagatelles e deixou que as suas vozes musicais distintas o guiassem na escolha das peças a apresentar. «Este processo prendeu-se com o desenvolvimento do que faço com grandes ensembles: preencher lacunas entre os mundos da improvisação livre e situações orquestradas, com recurso a sinais manuais e direção», explica. «Isto ajudou a construir situações para os improvisadores como partes orgânicas e fundamentais da composição, mantendo as passagens complexas e anotadas sem demarcação entre esses acontecimentos.»
Sem deixar de respeitar a obra original, “The Bagatelles Vol. 16”, apresenta um conjunto desafiante de arranjos. A direção ellingtoniana de Eastmond soube potenciar o melhor dos músicos com os quais trabalha. Se certas passagens lembram figuras buriladas por Ornette Coleman, outras remetem para o groove potente do Mingus Jazz Workshop ou para vinhetas cinematográficas de Bernard Hermann. A abrir, “Bagatelle #256”, de arranjo vívido e intenso, funda-se num motivo repetitivo, espécie de ostinato pós-rock irregular (parecem soar ecos distantes da “Turangalila”, de Messiaen), com a massa orquestral a funcionar como imparável locomotiva. “Bagatelle #78”, elegantíssima construção, traz uma atmosfera de início mais tranquila; um flamejante solo de trompete logo agita as águas, que se tornam mais imprevisíveis, numa vaga orquestral em crescendo.
“Bagatelle #143” mantém alta a rotação, emergindo as deambulações de um saxofone ayleriano; a arquitetura esdrúxula da peça vai conhecendo diferentes configurações, sempre sobre uma célula que se revigora obsessivamente. “Bagatelle #63” conhece um arranjo nutrido, com devido destaque para o papel pivotal do contrabaixista. De início mais solene, “Bagatelle #2” logo adquire potência, com a intervenção do pianista a servir de refrigério. Sobressaltos espasmódicos quebram o menor laivo de linearidade que pudesse existir. O piano coopta algum swing, remetendo certas passagens da peça para outras eras. Ao caleidoscópio estilístico junta-se um certo olor rock trazido pelo guitarrista. “Bagatelle #198” traz um ritmo maquinal a várias velocidades, com saxofone e trombone a libertarem-se. “Bagatelle #74” faz-se de apertados uníssonos num corpo sonoro em ebulição de que emanam intervenções individuais. No último minuto regressa a clareza meridiana do motivo-base. O pano baixa ao som de “Bagatelle #101”, com súbitas mudanças de direção, altos e baixos; no centro de tudo está o piano, que ora aporta um swing ameno, ora se torna mais afiado e dissonante.
“The Bagatelles Vol. 16” será lançado inicialmente como parte de uma caixa de edição limitada, “Bagatelles Box 4”, ao lado de distintos programas das Bagatelles, propostos por Peter Evans, Ben Goldberg e o Chris Speed & Jon Irabagon Quartet. Trabalhar sobre a obra de John Zorn nunca é tarefa fácil e Sam Eastmond fá-lo com distinção. “The Bagatelles Vol. 16” é uma magnífica coleção de arranjos que sublinham a relevância artística do britânico e reforçam o quanto é importante que continuemos a seguir o rasto do seu trabalho.
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John Zorn´s Bagatelles – Vol. 16 (Tzadik)
Sam Eastmond
Sam Eastmond (direção); Chris Williams (saxofone alto); Asha Parkinson e Emma Rawicz (saxofone tenor); Mick Foster (saxofone barítono); Noel Langley e Charlotte Keeffe (trompete e fliscorne); Joel Knee (trombone); Tom Briers (tuba); Moss Freed (guitarra); Olly Chalk (piano); Fergus Quill (contrabaixo); Alasdair Pennington (bateria)