Marcelo dos Reis & Luís Vicente: “(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet” (Cipsela)

Marcelo dos Reis & Luís Vicente: “(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet” (Cipsela)

Cipsela Records

António Branco

O guitarrista Marcelo dos Reis e o trompetista Luís Vicente, músicos que se conhecem particularmente bem de outros projetos e contextos sonoros, encontraram em conjunto novas formas de criar e evoluir. “(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet” é o seu registo inaugural enquanto duo. Tem selo da Cipsela Records e a jazz.pt já o escutou.

O dueto guitarra-trompete não é das configurações instrumentais mais habituais. Ainda assim, exemplos parecem não faltar: Dizzy Gillespie e Kenny Burrell, Philip Catherine e Chet Baker (e mais tarde Tom Harrell), Paolo Fresu e Ralph Towner, Ron Miles e Bill Frisell, Herb Robertson e Mark Solborg, Rob Mazurek e Jeff Parker ‎(não perder “Some Jellyfish Live Forever”, reeditado pela RogueArt em 2021), o duo Tin/Bag (Kris Tiner e Mike Baggetta) e, mais perto, Sei Miguel e Pedro Gomes (em “Turbina Anthem”, de 2011) ou Susana Santos Silva e Fred Frith no notável “Laying Demons To Rest”, já de 2023. 

A este rol de excelência vem juntar-se agora o duo formado pelo guitarrista Marcelo dos Reis e pelo trompetista Luís Vicente, nomes muito ativos e com percursos de relevo no panorama nacional do jazz mais estimulante e das músicas improvisadas relacionadas, e com inúmeras ligações internacionais. Os caminhos dos dois músicos cruzaram-se pela primeira vez em meados de 2009, num festival de jazz realizado em Évora. Desde esse momento têm vindo a colaborar em diferentes projetos e contextos sonoros (por exemplo, September 5tet, Frame Trio, no quarteto In Layers ou no Evan Parker X-Jazz Ensemble, que gravou "A Schist Story"), mas sobretudo nos projetos Fail Better! e Chamber 4) – em mais de uma centena de concertos com vários grupos, dezenas de digressões e onze discos –, fazendo com que conheçam particularmente bem as características musicais um do outro.

Gravado durante uma residência de quatro dias no Grémio Operário de Coimbra, em janeiro de 2022, misturado e masterizado pelo próprio Marcelo dos Reis, o novo álbum, “(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet”, editado pela Cipsela (recomenda-se um mergulho no catálogo desta editora sediada em Coimbra), é o registo de estreia do duo. A ideia de avançarem neste sentido já vinha de trás. «Na verdade, já tocamos em duo desde 2015, mas nunca atingimos a maturidade ou o som que queríamos para este formato, e foi durante esta residência onde solidificámos conceitos, compusemos muitos outros temas que ficaram fora do disco e que temos já tocado depois em algumas tours fora de Portugal e também por cá», explicam à jazz.pt. Mas só agora chegam ao entendimento da sua relação enquanto duo, num formato «complicado», admitem.

Durante esta residência encontraram a inspiração para mergulhar profundamente e encontrar uma voz enquanto duo, sem que se esbatam as vozes individuais. Esse é um dos grandes trunfos da música que se escuta em “(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet”. Apesar das fortes ligações, que escutamos amiúde nos vários álbuns que documentam a colaboração entre ambos, nunca como agora os dois músicos estiveram tão próximos, dependendo apenas de si próprios para criar um universo sonoro muito peculiar. Mas esta ligação telepática jamais resvala para o conforto das soluções previsíveis ou de lugares-comuns, sendo bem percetível um desejo de correr riscos e de desbravar novos caminhos, desafiando-se mutuamente. «Este disco marca um ponto de viragem na nossa interação enquanto duo, pois pela primeira vez deparámo-nos numa situação/residência onde pudemos pensar e imergir em ideias que cada uma tinha, transformando, a nosso ver, a linguagem do duo para algo mais único e especial», sublinham. «Até hoje sempre tivemos trabalhos publicados com outros colegas a servir como uma espécie de agregadores das ideias que podemos ter; aqui isso não existe, é tudo mais delicado, transparente e sensível, por isso julgamos que a economia de material e de ideias que faz a nossa música funcionar, leva-nos para campos onde achamos que não é necessário grandes artifícios ou virtuosismos desnecessários, mas isso é natural, a música vive por ela, e é ela que nos guia.»

O novo álbum é assim uma súmula dos caminhos até agora trilhados pelos dois músicos, um concentrado que resulta da depuração das experiências de vida, síntese de uma miríade de vivências e emoções acumuladas ao longo dos anos. «Perguntas sobre o nosso relacionamento musical foram respondidas quando escrevemos e executamos as várias composições», escrevem nas liner notes. «Partimos para a residência com o objetivo de assentar ideias, pensar sobre a música, e de juntar algumas das nossas ideias musicais mais íntimas para este contexto, que é um campo talvez um pouco até introspetivo», esclarecem em conversa com a jazz.pt. A geometria instrumental coloca desafios especiais, com que os dois músicos se defrontaram: «O formato guitarra-trompete é para nós um formato algo tricky, daí as questões sobre qual seria a melhor estrutura sonora para o nosso duo.» Quanto a referências, admitem não ter colhido inspiração em nenhuma em particular, preferindo focar adiante: «A nossa opção foi seguir o nosso caminho sem olhar para trás, talvez a imaginação do Don Cherry seja aquela que mais nos deixa voar.»

Em “(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet”, material composto coabita com improvisações, sem limitações impostas por linguagens ou referências (embora elas estejam lá, ainda que sub-reptícias), numa coleção de oito peças de natureza ampla, umas mais estruturadas e concretas, outras que evidenciam maior dose de abstração. A música não preparada permaneceria sem ser testada até o duo a tocar ao vivo após a residência. «Para além do tema “Cornelia”, que é um tema claramente composto, os restantes são a organização de ideias que muitas vezes assimilamos a música improvisada, e essas ferramentas são utensílios de composição, pode soar muitas vezes a improvisação livre pelo material que as músicas têm, mas as cabeças ou os leitmotiv têm ideias compostas, para além da improvisação obviamente muito presente», referem.

Na inaugural “Climbing Up the Mountain (Part 1)” os dedilhados suaves de dos Reis encontram aliado no sopro textural de Vicente, que exponencia as potencialidades sónicas do seu instrumento. Mais contemplativa é “Cornelia”, tema composto pelo guitarrista, com Vicente a desenhar uma linha melódica que se vai contorcendo e que o guitarrista acompanha não muito distante. “One Deer at a Car Window” assume contornos mais esdrúxulos, com o guitarrista a socorrer-se do arco para instalar uma tensão que o trompetista indaga. “Grizzly Bear” tem uma doçura especial, contrastando com “The Gray Car”, mais abstrata, com os dois músicos a fazerem uso de técnicas menos convencionais para construírem uma atmosfera intrigante e que nos deixa no limbo. “Whirlpool” traz uma melodia luminosa que vai adquirindo diferentes nuances e surpreendendo. “Rotterdam at Night” é tranquila e transportou-me mentalmente para um passeio na Ponte Erasmus ou pelas vielas de Delftsehof, antiga zona industrial particularmente imagética. “Climbing Up the Mountain (Part II)” encerra o álbum num caleidoscópio de sons em permanente metamorfose, com os dois instrumentos a comunicarem de forma próxima, agindo e reagindo, num jogo biunívoco de estímulos e contraestímulos.

Em “(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet” Luís Vicente e Marcelo dos Reis empreendem, juntos, uma interessantíssima jornada sonora, largamente recompensadora para quem nela embarca.

 

  • (Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet

    (Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet (Cipsela Records)

    Marcelo dos Reis & Luís Vicente

    Marcelo dos Reis (guitarra elétrica); Luís Vicente (trompete)

Agenda

04 Outubro

Carlos Azevedo Quarteto

Teatro Municipal de Vila Real - Vila Real

04 Outubro

Luís Vicente, John Dikeman, William Parker e Hamid Drake

Centro Cultural de Belém - Lisboa

04 Outubro

Orquestra Angrajazz com Jeffery Davis

Centro Cultural e de Congressos - Angra do Heroísmo

04 Outubro

Renee Rosnes Quintet

Centro Cultural e de Congressos - Angra do Heroísmo

05 Outubro

Peter Gabriel Duo

Chalé João Lúcio - Olhão

05 Outubro

Desidério Lázaro Trio

SMUP - Parede

05 Outubro

Themandus

Cine-Teatro de Estarreja - Estarreja

06 Outubro

Thomas Rohrer, Sainkho Namtchylak e Andreas Trobollowitsch

Associação de Moradores da Bouça - Porto

06 Outubro

Lucifer Pool Party

SMUP - Parede

06 Outubro

Marta Rodrigues Quinteto

Casa Cheia - Lisboa

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