Location Location Location: “Damaged Goods” (Cuneiform)
Cuneiform
“Damaged Goods” é o álbum inaugural do super-trio Location Location Location, formado pelo guitarrista Anthony Pirog, o contrabaixista Michael Formanek (a residir atualmente em Lisboa) e o baterista Mike Pride. Um álbum eletricamente carregado com chancela da Cuneiform e que a jazz.pt já escutou.
Location Location Location é um trio formado pelo guitarrista Anthony Pirog, o contrabaixista Michael Formanek (novel residente de Campo de Ourique, em Lisboa) e o baterista Mike Pride, que acaba de lançar o seu álbum de estreia, “Damaged Goods”, na Cuneiform. Três músicos de percursos muito preenchidos, mas distintos, que aportam diferentes elementos para música que fazem em conjunto.
O guitarrista, compositor e explorador sonoro Anthony Pirog é uma força silenciosa, mas omnipresente, nos palcos de sua cidade natal, Washington DC. Bebendo no trabalho de heróis da guitarra de DC, como Danny Gatton e Roy Buchanan, metabolizou todas essas influências para criar uma abordagem própria. Do seu pecúlio avultam álbuns como “Pocket Poem” (2020), no duo eletroacústico Janel and Anthony que fundou com a violoncelista (e sua mulher) Janel Leppin ou no mui interessante “Ensemble Volcanic Ash”, de Leppin, em 2022. Michael Formanek é um dos grandes contrabaixistas do nosso tempo, repartindo o seu trabalho por diversas formações e projetos pessoais, ao lado de gente ilustre como Tim Berne, Craig Taborn ou Uri Caine, para apenas mencionar alguns, o Ensemble Kolossus, o trio Thumbscrew, com Mary Halvoron e Tomas Fujiwara (em mais de uma década de trabalho conjunto lançaram títulos inescapáveis como o álbum homónimo de estreia em 2024, os gémeos “Ours”/“Theirs” (2019), “The Anthony Braxton Project” (2020), “Never Is Enough” (2021) ou “Multicolored Midnight” (2022), ou em propostas solísticas como o notabilíssimo “Imperfect Measures”, na Intakt, de 2022, antes de assentar arraiais na capital portuguesa. Mike Pride é um baterista e percussionista oriundo de Portland e baseado em Nova Iorque desde 2000, conhecido pelo grande número de bandas com as quais toca e de discos cuja ficha técnica ostenta o seu nome. Tem uma reputação significativa numa multiplicidade de comunidades musicais ao redor do mundo e uma interminável lista de colaborações, que inclui nomes como Anthony Braxton, John Zorn, George Lewis, Milford Graves, Butch Morris ou Otomo Yoshihide.
Eis-nos assim perante um power trio que não é difícil de imaginar a dar o litro no palco ou em estúdio, à espera de perceber aonde os levariam intermináveis jams. Eventualmente, acrescentariam uma camada de pós-produção mais ou menos espessa, ainda que o grosso da coluna fosse criado em modo live. Só que não. Gravado durante os dias mais plúmbeos da Covid-19, “Damaged Goods” é quase o contrário; os três músicos registaram as respetivas partes em locais separados, dois dos quais nunca se tendo encontrado pessoalmente. O que mais espanta é que estamos mesmo perante uma banda, com todos os seus pertences. «Acho que provavelmente são apenas as nossas personalidades, a maneira como trabalhamos e a maneira como queríamos ouvir isto», refere o guitarrista Anthony Pirog, que se encontrava e residir em Monterey, Califórnia, durante as sessões de gravação, enquanto Pride e Formanek estavam do outro lado do continente, na costa leste. Os três congeminaram “Damaged Goods” através de um constante vaivém de e-mails e ficheiros de som, confiando nos outros para aditarem ou rasurarem até que o material estivesse no ponto pretendido. «Tudo era muito novo», acrescenta Pirog. «Fiquei muito entusiasmado porque sou fã do trabalho de ambos, tanto compondo quanto tocando. Isso foi algo com que tive de lidar; “O que estás a receber para poder reagir?”, “Estás a iniciar a peça? “Como entregas isto e fazes com que seja algo que os outros possam complementar?”».
Formanek e Pride não estavam mais próximos apenas pelo que ditava o GPS; musicalmente fica claro como os dois formam uma secção rítmica poderosa e que funciona como locomotiva do som do grupo. A palavra ao contrabaixista: «Improvisar assim apresenta mesmo um conjunto de potenciais desafios.» «Mas devo dizer que neste projeto nunca senti que algo estivesse sufocado ou desconectado. Quando eu ouvia algo do Mike ou do Anthony, isso imediatamente me punha a pensar sobre o que fazer», sublinha Formanek. Os músicos estavam no mesmo comprimento de onda, facilitando o que poderia ter sido um trabalho de Hércules. Um pingue-pongue criativo que, mau grado as circunstâncias, gerou urgência e espontaneidade: «Na maioria dos casos, mergulhei depressa. As ideias iniciais eram muito rápidas, muito imediatas. De forma estranha, não parecia que não estávamos improvisando em tempo real, se é que isso faz algum sentido. O que foi um pouco surpreendente para mim!», acrescenta o contrabaixista. A naturalidade de todo o processo é também vincada por Mike Pride: «Toda a gente ouviu muito profundamente e ninguém tentou colocar uma certa personalidade nisso.» «Estávamos apenas experimentando e, no final, gostamos do que tínhamos e tínhamos um disco», reforça.
Em “Branch, Breezy” os sinos, as notas cavas de contrabaixo e a guitarra no vermelho logo estabelecem um interessante contraste entre orgânico e elétrico, numa atmosfera que se densifica, até que uma intervenção de Formanek parece lançar uma segunda secção da peça, onde se integram outros elementos, tanto destilados do jazz como de certo rock progressivo. Preparai-vos para o clímax. “Verdigris”, peça saída da pena de Formanek, é arrastada, com traços de um psicadelismo garrido – Pink Floyd dos alvores de setentas e King Crimson estão por toda a parte – tem os voos melódicos do guitarrista a adquirirem protagonismo. “Trad Doop” exala uma tensão nervosa que evolui sem nunca explodir verdadeiramente e “Ground Zero” surge empapada em eletrónicas. “Drips” é vinheta contemplativa que funciona como tranquilizante; já “79 Beatdowns”, original do baterista, é jornada caleidoscópica com uma guitarra mutante que carreia referências múltiplas: Formanek pega no arco e leva a peça para outra dimensão; depois, já no baixo elétrico, é aliado da guitarra, sempre com a bateria de Pride a propor elementos rítmicos decisivos. Em “Apperception”, de Pirog, tudo volta a aquietar-se, permitindo que o grupo eleve os níveis de interação com os vuímetros menos sobrecarregados. “A Sound That Shapes A Thing That Thinks” mostra a guitarra atmosférica de Pirog a pairar sobre uma camada eletrónica. “Damaged Goods” é acesamente rock, com guitarras saturadas e um viciante ritmo maquinal. A fechar, “Crisis of Attention” leva tudo novamente ao vermelho.
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Damaged Goods (Cuneiform)
Location Location Location
Anthony Pirog (guitarra, sintetizadores); Michael Formanek (baixo elétrico de 4 e 5 cordas, contrabaixo, guitarra); Mike Pride (bateria, marimba, bongos)