Mano a Mano: “Trilogia das Sombras” (Edição de autor)
Edição de autor
“Trilogia das Sombras” é o quinto álbum do duo Mano a Mano, dos guitarristas André e Bruno Santos, inspirado na vida e obra da artista plástica madeirense Lourdes Castro (1930-2022). Homens do jazz, trazem de novo os cordofones da ilha e outras referências. À belíssima música juntam-se as palavras do cardeal José Tolentino de Mendonça e um disco-livro de Carla Cabral. A jazz.pt já o escutou (e leu).
Os irmãos André e Bruno Santos, madeirenses, são, acima de tudo, guitarristas do mundo. Para a sua música trazem, para além do jazz – tão entranhado nas suas vidas – a tradição musical da ilha onde nasceram e várias outras referências, da pop à música popular brasileira, plasmadas numa abordagem muito particular que se sente estar em permanente desenvolvimento. “Trilogia das Sombras”, projeto multimédia que inclui música, poesia, performance e artes plásticas, é o seu quinto disco – depois de “Mano a Mano” (2014), “Vol. 2” (2017), “Vol. 3” (2019) e “O Disco de Natal” (2020) – e o primeiro em que o repertório é constituído exclusivamente por temas originais do duo.
No novo disco tiveram, pela primeira vez, uma premissa extramusical como mote para a criação, e isso refletiu-se no próprio processo de gestação da música: a vida e a obra de Lourdes Castro (1930-2022), multifacetada artista madeirense. «Tivemos contacto com a obra dela através de uns amigos arquitetos (do Ponto Atelier) que em 2019 conceberam, para a apresentação do “Vol. 3” no Funchal, um cenário inspirado numa das obras icónicas de Lourdes Castro, “O Grande Herbário das Sombras”. Essa foi a semente que foi germinando até este disco», explica André Santos à jazz.pt. «E a cada descoberta» – acrescenta – «mais nos deliciávamos. O seu olhar descomplicado sobre a arte e sobre o mundo fascinou-nos. Um olhar de criança que se manteve a vida toda.» «Ao invés de partir do nada, partimos daquilo que nos deixou a Lourdes, não só a obra mas a vida», complementa o irmão Bruno. «Quisemos, mais que tudo, tentar transmitir o que a obra e a vida da Lourdes Castro nos transmitiu. O seu fascínio pela botânica, as raízes, o trabalho que é feito na sombra, dar tempo ao tempo para que as coisas germinem, o olhar de espanto sobre as mais pequenas e o fazer sem grandes expectativas. Fazer até ao fim, e bem», realça André. «Anda o silêncio em volta a querer falar», diz a epígrafe. E falou.
Este impulso externo fez o duo indagar novos territórios relativamente aos discos anteriores. «O processo de gravação foi muito fácil, como de costume. Sendo que desta vez, em vez de irmos para estúdio, decidimos gravar em casa do mano mais velho. Em três manhãs fechámos o disco. Já é o quinto disco e ainda não estamos fartos um do outro e a nossa dinâmica de trabalho é muito fluida», diz André. Bruno corrobora: «Trabalhávamos um tema e gravávamos de seguida, ao invés de ter tudo ensaiado e montado e só depois gravar.» À música original dos irmãos acrescem textos do cardeal José Tolentino Mendonça – é ele quem nos recorda que «a obra visual incrível que a artista Lourdes Castro deixou é demasiado intensa e poliédrica para ficar limitada a um campo só. O seu alcance é maior. A obra de Lourdes Castro ajuda-nos a ser» – e um belo disco-livro de Carla Cabral, em que a artista recorre a costura, pintura, desenho e transfer sobre tecido e papel. E assim se completa a trilogia: Manos, Carla e Tolentino.
“Trilogia das Sombras” acaba por revelar a evolução do duo. Apesar da natural proximidade, as abordagens de André e Bruno Santos (este dez anos mais velho) são distintas e complementares, aspetos essencial para o som que logram em conjunto, na forma como dialogam e cruzam as respetivas vozes, polinizando-se mutuamente. «Em termos de princípios musicais e background musical, vimos do mesmo sítio. Cada um terá o seu sotaque, mas a língua é a mesma», sublinha Bruno. «Há uma tendência natural para rotular o André de uma determinada maneira ou corrente e o mesmo se passa comigo, mas eu não vejo a coisa dessa maneira tão simplista e hermética. Acho que o modo como se transmite uma mensagem ou nos expressamos tem muito mais relevância. Tem a ver com a disponibilidade para pensar coletivamente, pensar na música em primeiro lugar, generosidade para dar espaço ao outro, confiança no que vem do outro lado», acrescenta. André também reflete sobre esta dualidade: «Tocando o mesmo instrumento que ele... se calhar tinha uma voz fantasma que me ia dizendo «tens de ser diferente»... e no início é possível que tenha feito um esforço para fugir às pegadas do mano mais velho. E os 10 anos que temos de diferença também devem contribuir para essas abordagens distintas.»
A música do duo continua a exibir sofisticação harmónica e grande riqueza melódica, mas também ousadia e um sempre presente desejo de experimentação. Às guitarras e aos pedais de efeitos juntam-se os cordofones madeirenses, como o rajão e a viola de arame. «A melodia é uma parte essencial na nossa vida musical. Ainda que neste disco seja possível ouvir alguns momentos experimentais, “condicionados” também pelas fases da vida e obra da Lourdes. E acho que isso reforça que a nossa atitude perante a música é de permeabilidade ao que vem de fora. Não temos ideias fechadas e inflexíveis. Independentemente da composição ser mais ou menos “óbvia”», reforça Bruno Santos. Com a música da tradição madeirense a continuar a ser um imenso manancial para explorações: «Eu e o André temos a inquietude de ir investigando e cavando um pouco mais. Não pretendemos fazer música tradicional mas as nossas raízes estão na Madeira. Os cordofones madeirenses fazem uma espécie de ponte para as nossas raízes.»
Inspirada no “Anjo de Berlim” (obra elaborada na capital alemã, no Natal de 1978, patente na Capela do Rato, em Lisboa), “Caixa de Música - O Baile do Anjo” abre o álbum com uma melodia simples e bela que remete para a caixinha sonora, com os dedilhados cristalinos, tricotados contrapontisticamente. Segue-se o balanço soalheiro, cantarolável, de “Pedra, Papel e Tesoura”, tema que se desenvolve e acolhe outros elementos que lhe conferem complexidade, tal como nos livros de artista de Lourdes Castro. A relojoaria de “Contemplação, Inquietação, Separação” transpõe para música esses três estados de alma vividos pela artista em diferentes fases da sua vida: a primeira parte é mais contemplativa, aludindo à fase ainda na Madeira; a inquietação, passagem mais agitada, representa o momento em que começa a pensar deixar a ilha e partir para Lisboa; em frémito crescente, a separação e a emigração, a rutura.
“Agitações” é uma peça magnífica saída da pena de Bruno Santos, com a sua atmosfera intrigante da qual emerge uma belíssima melodia, oscilando entre atmosferas tensas e outras onde a tranquilidade impera, como perguntas e respostas. “Sol e Sombra”, escrita pelos dois num jogo de influências biunívocas, é bálsamo tranquilizante; as guitarras cruzam serenamente os seus caminhos, tocando o mesmo motivo e dobrando uma melodia, como se uma fosse a sombra da outra, o que tem um sentido bem preciso: «A sombra foi matéria-prima essencial na obra da Lourdes. Tal como o sol, que fazia crescer as suas plantas e iluminava o seu vasto jardim», sublinha o mano mais velho.
“Murmúrio do Vento”, da autoria de André Santos e o único tema não composto especificamente para este projeto, é um dos momentos maiores do álbum, com a sua arquitetura desafiadora a cada instante, tirando partido da sonoridade característica da viola de arame, peça que serve de contraste (ou reforço?) a “Murmúrios do Mar Embalam os Calhaus”, que conta com uma gravação da própria Lourdes Castro: «Em dias de levadia, ouvíamos em casa o barulho do mar a arrastar pelos calhaus, rolava-os dia e noite, anos, séculos, até que bocados de basalto ficassem assim tão lisos e macios», retirado de “Pelas Sombras”, documentário realizado por Catarina Mourão. Os harmónicos da guitarra e o slide, a certo momento, parecem evocar o elemento aquático, tão caro à artista. “O Que Não Se Vê” é expoente da sensibilidade melódica do duo, com um começo escuro que progressivamente se ilumina.
Em “Uma Espécie de Pacto” (peça inicialmente intitulada “1000 Coisas”, por conta da frase de Lourdes Castro: «O que somos nós senão um agregado de 1000 coisas?») escutam-se as palavras de Tolentino de Mendonça a recitar o seu poema “Lourdes Castro, Rua da Olaria”: «A minha arte é uma espécie de pacto, não distingo as áreas selvagens das cultivadas, e elas não distinguem a minha sombra da minha luz.») O requinte de “Ein Herz”, baseada num dicionário de alemão que Lourdes Castro criou para Manuel Zimbro, com recortes, desenhos e outros elementos («numa das folhas há um coração recortado, compus este tema imaginando o pulsar do coração», diz André), é outro dos melhores momentos do disco, encerrando-o num tom apaziguador de que tanto necessitamos nestes dias turbulentos.
Disco de assinalável beleza, “Trilogia das Sombras” é prova maior, se requerida fosse, da relevância musical do duo Mano a Mano. Para nosso deleite, ainda lhes resta todo um oceano por desbravar.
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Trilogia das Sombras (Edição de autor)
Mano a Mano
André Santos (guitarra e viola de arame); Bruno Santos (guitarra e rajão)