Franz Hautzinger: “Gomberg III-V - Airplay” (Trost)
Trost
“Gomberg III-V - Airplay” reúne peças gravadas entre 2008 e 2018 pelo trompetista, compositor e explorador sonoro austríaco Franz Hautzinger. Um álbum conceptual, complexo e desafiante, editado pela Trost Records e que a jazz.pt já escutou.
A conclusão é a do mestre japonês Toshinori Kondo: «A maioria dos trompetistas julga que o trompete é um instrumento musical para emitir sons com a respiração, mas descobri que é um instrumento musical para emitir sons para expressar a respiração.» Uma abordagem exploratória à arte trompetística que encontra particular eco no labor perseverante de Franz Hautzinger (n. 1963), plasmado em diferentes contextos e configurações instrumentais.
Gomberg, alter-ego utilizado pelo trompetista, compositor e explorador sonoro austríaco é uma ferramenta para, confessa, «ultrapassar as suas próprias limitações». Ao jeito pessoano de desmultiplicação da personalidade, Gomberg ganha vida e, para nosso gáudio, faz o que lhe dá na gana. Nas notas de apresentação que acompanham o álbum, Burkhard Stangl sublinha certeiramente que o personagem criado por Hautzinger é um “trapaceiro moderno” ou um “ladino divino” que em toda a sua hipermodernidade «evoca vagas lembranças de um passado arcaico, em que não se fazia distinção entre o divino e o não divino, e não se incomoda com desvios inadmissíveis da norma.»
A música que escutamos em “Gomberg III-V - Airplay” foi registada ao longo de uma dezena de anos, entre 2008 e 2018, em Viena e Brest, e agora lançada pela Trost Records, editora sediada na capital austríaca e que continua a erguer um inescapável catálogo. As peças coligidas têm origem diversa: tanto são composições encomendadas para ocasiões particulares, como instalações ou bandas sonoras de filmes, colaborações com autores de teatro ou escritores, fragmentos baseados em notas pessoais. Duas das peças são alusões «ao sopro da alma» (Hautzinger dixit) de dois compositores referenciais para si: John Cage e Josef Matthias Hauer.
O que escutamos tanto pode ser entendido como uma grande peça orquestral ou como uma coleção de peças avulsas que adquirem notável coerência e unicidade; uma jornada sonora em 22 peças com duração total de quase 70 minutos (recomenda-se audição sequencial e ininterrupta) que desafia os sentidos desde os primeiros instantes ou, mais do que isso, nos insta a nela entrar. Atentando na arquitetura formal, é possível discernir dois blocos constituídos por nove peças cada, enquadrados por duas composições mais longas, de sete minutos; uma coda dupla encerra o álbum.
Hautzinger expande os limites do trompete enquanto instrumento musical, acoplando-o a eletrónicas que lhe transfiguram o som, bastas vezes cruzando a barreira do reconhecível; acima de tudo, o seu instrumento é um veículo para cruzar fronteiras. Tanto há remissões para a obra de um Ligeti, por exemplo, como peças de travo futurista, sempre profundamente imagéticas, num limbo instável entre passado e futuro.
“Reaktor”, onde se fundem trompete e eletrónicas, é planante intróito; a suíte “Breast Machine”, em quatro partes, é dominada por camadas etéreas de proveniência ignota que se entrecruzam e desafiam. “1812” é mais fantasmagórica e “Cage 9.1” leva-nos para territórios mais abstratos, que se aprofundam em “Hauer 9.7”, da qual se ergue sopro alienígena. Hautzinger utiliza judiciosamente técnicas pouco convencionais (como em “9.8”), mas também explora com requinte fragmentos melódicos, tal como nos é dado a escutar na bela “Mother of Dreams”, nas quatro vinhetas que intitulou “Poetry” ou nesse monumento filigrânico que é “Strong Question for a Life”.
Outros dos momentos que ressoaram são “Juri Andruchowytsch” (escritor e político ucraniano, cofundador do grupo poético BuBaBu), com a linha melódica processada sobre base eletrónica, a solenidade de “Aside” ou a mais sombria “Never Do This Again”, que, com a lógica sombria que descortinamos, antecede a pungente homenagem a Anna Politkovskaya, jornalista e ativista russa assassinada em 2006, em Moscovo, conhecida pela sua oposição à guerra da Chechénia e à governação de Vladimir Putin. O introspetivo “Someting About Our Past” transporta-nos pelos caminhos insondáveis de como lidamos com o que deixamos para trás; “Andrjez Sosnowski” (poeta e tradutor polaco), a derradeira das dedicatórias, é soturna e inquietante; ao cair do pano, “The End” surpreende-nos com o dedilhado de zither, como que colocando em causa tudo o que atrás experienciamos.
Testemunho do relevantíssimo trabalho de Franz Hautzinger, “Gomberg III-V - Airplay” é uma obra complexa e desafiante que faz soar alarmes, o que só pode ser lido como um desbragado encómio.
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Gomberg III-V - Airplay (Trost)
Franz Hautzinger
Franz Hautzinger (trompete, aparelhos eletrónicos, zither, voz, percussão)