Adjunct Ensemble: “Sovereign Bodies / Ritual Taxonomy” (Diatribe Records)

Adjunct Ensemble: “Sovereign Bodies / Ritual Taxonomy” (Diatribe Records)

Diatribe Records

António Branco

“Sovereign Bodies / Ritual Taxonomy” é o ambicioso e multímodo registo inaugural do coletivo Adjunct Ensemble, liderado pelo multinstrumentista, compositor e estratego sonoro irlandês Jamie Thompson. Aglutinando jazz, canto lírico, hip-hop, poesia e intervenção política, é um tonitruante grito contra a indiferença, com selo da Diatribe Records, e que a jazz.pt já escutou.

Em 2015, a empresa de private equity ORS Service AG afirmou ter um «potencial de crescimento orgânico e aquisitivo promissor» no fornecimento e gestão de campos de refugiados, depois de relatar 99 milhões de dólares em receita; as condições num centro de detenção da ORS na Áustria foram contudo descritas como «abaixo da dignidade humana», com 4500 pessoas ocupando um local adequado para 1800. Quatro anos depois, a União Europeia testou detetores de mentiras, baseados em inteligência artificial, na Grécia, Hungria e Letónia, que digitalizam e analisam “micro-expressões” faciais para determinar se um requerente de asilo está a faltar à verdade durante uma entrevista.

Eis apenas dois dos marcos que o multi-instrumentista e compositor irlandês Jamie Thompson compilou para dar forma a “Sovereign Bodies / Ritual Taxonomy”, ambicioso projeto eletroacústico levado a cabo pelo Adjunct Ensemble e para o qual convergem elementos de tabuleiros sonoros díspares como o jazz, o canto lírico, a cultura hip-hop, a poesia e a intervenção política. Henry Threadgill, Frank Zappa ou os Irreversible Entanglements são referências que não soarão descabidas.

Nome provavelmente desconhecido dos melómanos portugueses, Jamie Thompson viveu e estudou música eletroacústica em Newcastle, dedicando-se à improvisação no piano e no oboé e colaborando com Will Edmonds (Yeah You) no duo Base Cleft. Ensinou nas Universidades de Newcastle e de Bristol, e pouco depois de regressar à Belfast natal foi nomeado como um dos “artistas emergentes”, tendo tido oportunidade de escrever peças corais e obras eletrónicas de cunho mais experimental.

Para dar corpo a “Sovereign Bodies / Ritual Taxonomy”, Thompson reuniu o Adjunct Ensemble, coletivo de geometria variável que se apresentou pela primeira vez ao vivo no Brilliant Corners Jazz Festival, na capital da Irlanda do Norte, em março de 2022. Se nessa ocasião o efetivo era mais reduzido, agora conta, para além do próprio Thompson, com uma dúzia de músicos: a diseuse de origem nigeriana Felicia Olusanya (aka Felispeaks), a soprano irlandesa – a residir em Hannover, Alemanha – Amy Ní Fhearraigh, a giradisquista britânico-iraniana Mariam Rezaei, o pianista Elliot Galvin, o saxofonista alto Jamie Stockbridge, a saxofonista tenor Catherine Sikora Mingus, o guitarrista Michael Parr-Burman, bateristas/percussionistas Adam Stapleford, Stephen Davis (baterista do grupo The New Standard, de Anthony Braxton, e que já escutámos ao lado de Alexander Hawkins (ver crítica de Gonçalo Falcão aqui) e Paul Dunmall), Darren Beckett e Oscar Cassidy, e o baixista John Pope.

O período de composição decorreu entre janeiro de 2020 e agosto de 2022. Jamie Thompson trabalhou em torno de vários textos relacionados com a migração para países europeus: documentos do UK Home Office, relatórios de Organizações Não Governamentais”, artigos de jornais, programas de rádio, análises linguísticas, inventários fonéticos (em somali, farsi, afegão, pashtun, curdo – línguas faladas em países como o Iraque, a Síria, o Sudão ou o Iémen, considerados hotspots do terrorismo), transcrições de entrevistas de asilo. Tudo começou com cinco peças para soprano e eletrónica; Fhearraigh gravou as suas partes via Zoom, em pleno primeiro confinamento, em 2020.

O que aconteceu é-nos contado pelo próprio Thompson: «Temos então uma cantora profissional cujas tradições operáticas radicam nas linguagens das potências coloniais europeias a ler taxonomias fonéticas das línguas faladas em países que sofreram sob o colonialismo até ao dia de hoje.» Estas gravações foram misturadas com improvisações feitas com eletrónicas caseiras, sintetizadores e field recordings e enviadas para Mariam Rezaei, que então as trabalhou, respondendo com mais de uma hora de improvisações. Thompson pegou nesse material e criou colagens, textos, game pieces e partituras gráficas para o power-trio Taupe (Stockman, Parr-Burman e Stapleford). Juntou tudo com novas eletrónicas, órgãos de igreja, mbiras e gira-discos. Deixou Felicia Olusanya desenvolver livremente os seus textos, sem interferir propositadamente. O resultado são duas dezenas de peças agrupadas em quatro partes (“Sovereign Bodies”, “Ritual Taxonomy”, “Integrate/Ingratiate” e “Essential Experience”), com duração total a rondar hora e meia. Como álbum conceptual, ainda que tal não seja mandatório, recomenda-se que a audição se faça na sequência apresentada.

«Não tinha uma ideia preconcebida do resultado final, apenas uma espécie de fé em que a colisão de uma cantora de ópera, uma giradisquista, uma poeta e um trio de jazz-punk pudesse produzir algo desafiante», sublinha Jamie Thompson. O produto acaba de ver luz do dia pela mão da Diatribe Records, editora fundada em 2007 em Dublin e em cujo catálogo – destinado a promover um leque de géneros musicais que vão do jazz à eletrónica, passando pela música erudita contemporânea - figuram nomes de relevo como Barry Guy, John Tilbury e Maya Homburger.

A noção de permanente mudança de atmosferas musicais surge exacerbada em peças como “Nothing Grows Here - How Dare You To Be Free”, logo a abrir numa lógica spoken word/hip-hop, no negrume de “They Didn’t Know Our Lives And Deaths Would Make Earth Remember”, ou na claustrofóbica “Vernacular Snags / Home Is No More”. A diferente instrumentação é utilizada de forma judiciosa e eclética para criar momentos interessantes, seja o saxofone ayleriano que escutamos em “Territorial Irregularities”, o piano esdrúxulo que instala o caos em “God, Who Made Thee Mighty?”, a urgência de “Open Your Eyes” ou a hipertensão latente na fantasmagórica “Jerusalem”. A solenidade da voz de Fhearraigh marca “Our Sovereign Bodies”, a que se juntam sopros em desalinho e eletrónicas espessas, e as palavras de Felispeaks sublinham o desejo de perseverar em “I Will Keep Talking”. “We Have Seen / Some Might Say” é o epílogo que nos desmascara a todos.

Inclassificavelmente diverso, “Sovereign Bodies / Ritual Taxonomy” faz chocar de frente, usando música e palavras, mas não só, as grandes forças da nossa existência: a vida contra a morte, o conforto contra o terror, a paz contra a guerra. E fá-lo agitando consciências e de uma forma que não deixará ninguém indiferente, num tempo em que medram individualismos, egoísmos e outros tenebrosos ismos.

 

  • Sovereign Bodies / Ritual Taxonomy

    Sovereign Bodies / Ritual Taxonomy (Diatribe Records)

    Adjunct Ensemble

    Jamie Thompson (textos, sintetizadores, órgão de tubos, ruídos de máquinas, gira-discos, mbira, drum machines, field recordings, gravadores de cassetes, dictafones, assobios); Felicia Olusanya (aka Felispeaks) (texto, spoken word); Amy Ní Fhearraigh (voz, spoken word); Elliot Galvin (piano); Jamie Stockbridge (saxofone alto); Catherine Sikora Mingus (saxofone tenor); Michael Parr-Burman (guitarra); John Pope (baixo); Adam Stapleford (bateria); Stephen Davis, Darren Beckett, Oscar Cassidy (bateria e percussão); Mariam Rezaei (gira-discos)

Agenda

10 Junho

Imersão / Improvisação

Parque Central da Maia - Maia

10 Junho

O Vazio e o Octaedro

Parque Central da Maia - Maia

10 Junho

Marta Hugon & Luís Figueiredo / Joana Amendoeira “Fado & Jazz”

Fama d'Alfama - Lisboa

10 Junho

Maria do Mar, Hernâni Faustino e João Morales “Três Vontades de Viver”

Feira do Livro de Lisboa - Lisboa

10 Junho

George Esteves e Kirill Bubyakin

Cascais Jazz Club - Cascais

10 Junho

Nuno Campos 4tet

Parque Central da Maia - Maia

10 Junho

Tim Kliphuis Quartet

Salão Brazil - Coimbra

10 Junho

Big Band do Município da Nazaré e Cristina Maria “Há Fado no Jazz”

Cine-teatro da Nazaré - Nazaré

10 Junho

Jorge Helder Quarteto

Fábrica Braço de Prata - Lisboa

11 Junho

Débora King “Forget about Mars” / Mayan

Jardins da Quinta Real de Caxias - Oeiras

Ver mais