Afonso Pais / Tomás Marques: “The Inner Colours of Boglin’s Outline” (Clean Feed)
Clean Feed
O jovem saxofonista Tomás Marques e o já consagrado guitarrista Afonso Pais reuniram-se para, desta vez, “não tocar jazz”. Lançado no início de 2023, “The Inner Colours of Boglin’s Outline” tem edição da Clean Feed e é uma bela surpresa.
Apesar de tanto que os une, os mundos do jazz e da música livremente improvisada estão separados por uma enorme fenda. Não são muitos os músicos que ousem atravessá-la para navegar em ambos os universos musicais, mas quando o fazem os resultados costumam ser especiais. Desta vez, dois músicos portugueses ligados ao jazz, Afonso Pais e Tomás Marques, resolveram aventurar-se a dialogar sem rede.
Afonso Pais (nascido em 1979) é um dos mais consensuais guitarristas da nossa praça, estatuto que vem confirmando desde que editou em 2004 (há quase vinte anos!) o seu disco de estreia, “Terranova”, edição Clean Feed. A sua discografia e percurso não serão os mais comuns e o guitarrista tem explorado diferentes projetos, trabalhando sobretudo parcerias com cantores: “Subsequências” contou com o enorme Edu Lobo (2008), gravou “Onde Mora o Mundo” em parceria com JP Simões (2011) e “Além das Horas” foi gravado com a cantora Rita Maria (2016). Mais recentemente, em 2021, editou um objeto musical inclassificável, “O que já importa”, onde se destacavam três vozes (Nazaré da Silva, João Neves e Maria Luísa), além de contar com Salvador Sobral e Capicua como convidados. E, já no ano passado, apresentou no Hot Clube um novo projeto, um trio com Bernardo Moreira e João Lopes Pereira a trabalhar revisões jazzísticas de músicas do 007.
Bem mais jovem, Tomás Marques (nascido em 1999, 20 anos mais novo) tem também um CV mais breve. Membro da geração “pós-Toscano” (sub-30), afirmou-se rapidamente como notável saxofonista e integra a fornada de talentos que se tem afirmado na cena nacional nos últimos 2/3 anos (ao lado de músicos como Bernardo Tinoco, Vera Morais, Miguel Meirinhos, Hristo Goleminov, Tom Maciel e Joana Raquel, entre outros). Integra os grupos Bernardo Moreira Sexteto (“Entre Paredes”), Pedro Moreira Sax Ensemble e LAB (de Ricardo Pinheiro e Miguel Amado) e é co-líder de um grupo com o baterista Diogo Alexandre.
Ambos são figuras marcantes da cena jazz, é essa a sua linguagem musical e território comum. Mas, neste projeto, Marques e Pais abdicam de “tocar jazz”. Não se servem de composições e não seguem as regras habituais do género. Marques e Pais optam por estabelecer um diálogo musical conciso, sem terem nada pré-estabelecido, um duo improvisado de saxofone alto e guitarra elétrica (ligação também pouco usual). O disco “The Inner Colours of Boglin’s Outline” reúne um conjunto de gravações, cinco improvisações em duo, registadas em diferentes momentos.
Habitualmente, na improvisação livre os praticantes do género costumam seguir algumas “regras” (não escritas, mas implícitas): o arranque marcado pela contenção e pela escuta atenta; a procura de pontos de contacto e linhas comuns; até que a música vai evoluindo para crescendos enérgicos; e, neste processo, nunca se ouvem linhas melódicas muito definidas, apenas fragmentos, esboços. Pais e Marques servem-se da sua experiência jazzística para criar algo novo e diferente. Num permanente jogo do gato e do rato, guitarra e saxofone vão-se perseguindo; um lança uma ideia, o outro responde, consolidando a estrutura, e o tema vai evoluindo, com a música a ganhar formas melódicas sólidas.
Apesar de composta no momento, a música é estruturada pela capacidade de cada músico se ir ligando nas ideias do outro. Este não é um típico disco de improvisação pura. Esta música é puramente improvisada, mas este disco é sobretudo um manifesto de profunda musicalidade, assente num perfeito diálogo e comunicação.
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The Inner Colours of Boglin’s Outline (Clean Feed)
Afonso Pais & Tomás Marques
Afonso Pais (guitarra elétrica); Tomás Marques (saxofone alto)