Angel Bat Dawid: “Requiem for Jazz” (International Anthem)
International Anthem
Ao seu segundo disco de originais, Angel Bat Dawid não canta por um jazz morto: propõe reconetar o jazz com a história afro-americana. O novo disco acaba de ser editado e esta música é marcada pela originalidade.
Aquele outro amigo disse-nos há muitos anos a tal frase icónica que não passa de moda: o jazz não morreu, só tem um fedor esquisito (tradução livre). Agora, Angel Bat Dawid não vem declarar a morte de ninguém, apenas propõe um requiem ao falecido. Se o jazz morreu mesmo, talvez seja estranho continuarmos por aqui a escrever regularmente numa publicação 100% dedicada a algo que já se foi. E, contudo, cá estamos.
Na verdade, aquilo que esta nova obra propõe é reconetar o jazz com a história afro-americana. Nascida em 1979, Angel Bat Dawid é uma versátil instrumentista, cantora e compositora. O disco “The Oracle” (2019), objeto raro, revelou-a ao mundo. E agora, com o novo disco, Dawid avança mais um passo em frente, olhado para o passado. Como referência-base para este seu novo disco, Angel Bat Dawid foi buscar inspiração ao filme “The Cry of Jazz”, documentário de Edward O. Bland de 1959. O filme conta com momentos musicais da Arkestra de Sun Ra e, pelos diálogos, passa a ideia de que a vida dos negros na América partilha uma identidade estrutural com a música jazz.
O disco novo reúne um total de 24 temas, doze músicas intercaladas com doze interlúdios. Nos interlúdios (breves, cerca de um minuto), são transmitidas mensagens curtas, de frases retiradas do filme: “Jazz is merely the Negroes cry of Joy & Suffering”; “Jazz is the musical expression of the triumph of the Negroes Spirit”; “Another restraining factor in Jazz are the changes”; “Jazz reflects the improvised life thrust upon the Negro”; “Through Spirituals, through the Blues, then through Jazz we made a memory of our past and a promise of all to come”; “The Jazz body is dead but the Spirit of Jazz is Alive”. Nascido no seio da comunidade afro-americana, reflexo das suas agruras e alegrias, o jazz foi depois apropriado por todo o mundo; e tem aqui uma proposta de regresso às suas origens. O jazz estará morto, mas o seu espírito vive. Paz à sua alma, viva o jazz!
Dentro da rodela, a música, propriamente dita, não é uma coisa única, é uma mistura de várias. A formação instrumental revela desde logo o cariz ambicioso do projeto: a par de instrumentação mais habitual (piano, contrabaixo, percussão e eletrónica), juntam-se seis sopros, quatro cordas e quatro vozes. Esta música engloba elementos de jazz (sim), destacado na irreverência sopros; mas não se fica por aí: juntam-se as vozes/coro, que evocam a religiosidade dos espirituais, mas sobretudo um certo rigor coral da tradição europeia; as cordas levam-nos também para o classicismo europeu; e são acrescentadas novas camadas, inescapáveis na contemporaneidade de 2023.
No primeiro single, “RECORDARE - Recall the Joy”, ouve-se primeiro vozes em lamento; entram depois os sopros em rebuliço; esta música vive de estruturas rígidas, onde os coros angelicais têm espaço para brilhar, seguindo-se por vezes em confronto com a rebeldia dos sopros; e o tema segue viagem, com as cordas, piano, eletrónica, todos ao molho. Este disco é um caldeirão caleidoscópico: em diferentes momentos, há paz e anjos, mas também demónios e inferno. Num dos temas (“LUX AETERNA…”) participam Marshall Allen e Knoel Scott, membros atuais da Arkestra (e Allen, com 98 anos, está na Arkestra desde 1958!), fazendo a ligação direta com o filme.
Com capa de Damon Locks (esteve recentemente no Jazz em Agosto, com o seu Black Monument Ensemble), este disco é notoriamente uma obra ativista e política. Homenagem à herança e consciência negra, o disco assume a crítica ao racismo estrutural na América. Servindo-se de múltiplos recursos da música contemporânea experimental, cria-se uma homenagem ao jazz, assumindo-o como elemento central da cultura afro-americana.
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Requiem for Jazz (International Anthem)
Angel Bat Dawid
Angel Bat Dawid (composição, arranjos, direção, clarinete, piano, voz); Dr. Charles Joseph Smith (piano); Jeremiah Hunt (contrabaixo); Vincent Davis (percussão); Xristian Espinoza (outros instrumentos); Norman W. Long (eletrónica); Dr. Adam Zanolini (flauta); Hannah Washington (clarinete); Sam Thousand (trompete); Isaiah Collier (saxofone soprano); Fred Jackson Jr. (saxofone alto); Kwesaiah (saxofone tenor); J’Niya Blunt (violino); DaJour Smith (violino); Michelle Manson (viola); Olula (violoncelo); coro: Tramaine Parker (soprano), Monique Golding (alto), Deacon Julian Otis Cooke (tenor), Phillip Armstrong (barítono); convidados “cósmicos” em “LUX AETERNA - Eternal Light / My Rhapsody”: Marshall Allen (saxophone alto, EWI), Knoel Scott (percussão)