André Matos / Jeremy Udden: “Wandering Souls” (Robalo)
Robalo
“Wandering Souls”, com edição da Robalo, é o disco que junta pela primeira vez em duo o guitarrista português André Matos e o saxofonista norte-americano Jeremy Udden. Os dois conceberam uma música serena e profundamente imagética que a jazz.pt já escutou.
André Matos (n. 1981), guitarrista português a residir em Nova Iorque desde 2008, tem incrementado significativamente a sua discografia nos anos mais recentes. E em diferentes contextos, embora pareça haver um denominador comum: uma predileção por formatos reduzidos, potenciando a criação de ambientes de maior intimidade sónica. Breve recordatória: em 2021, trouxe-nos “Casa” – o último tomo da tetralogia a solo –, o magnífico “On the Shortness of Life”, conjunto de duos engendrados remotamente em plena pandemia – “Estelar” (intitulado a partir da guitarra acústica Stella) – o EP “Orbit”, e os álbuns gémeos “Roam Free” e “Ritual”. No ano passado chegou-nos “Limbo”, de novo a solo, e “Directo Ao Mar”, em trio, acompanhado pelo baixista João Hasselberg e pelo baterista João Pereira.
Em 2023 chega “Wandering Souls”, com edição da Robalo, em parceria com o norte-americano Jeremy Udden (n. 1978), saxofonista (alto e soprano), compositor e pedagogo, que tem liderado formações como Plainville (homenagem à cidade onde nasceu, no Massachusetts) e o Torchsongs Trio. Dois músicos com muito em comum, desde logo as experiências de crescimento num ambiente rural, mas separados por um oceano, e que agora encontram juntos uma oportunidade para celebrar um momento de tranquilidade no meio do avassalador bulício da vida urbana moderna. Os dois músicos conheceram-se há duas décadas através de Nathan Blehar, saxofonista que toca no primeiro disco do guitarrista, “Pequenos Mundos/Small Worlds”, editado em 2005 pela Fresh Sound New Talent. Em comum a alma mater, o New England Conservatory, por onde os dois norte-americanos passaram um pouco antes do português. «São duas pessoas atualmente muito próximas com quem comunico frequentemente. Já nessa altura tornei-me fã do som claro e sereno do Jeremy através do disco de estreia dele, “Torch Songs” e também de um bootleg da banda Planet Earth, um quarteto com ele, Nathan, um baixista e um baterista», explica André Matos à jazz.pt.
Matos e Udden foram-se encontrando esporadicamente e tocando um pouco mais nos últimos quatro ou cinco anos. «Várias vezes falámos de fazer um grupo juntos, e houve até uma tímida tentativa com um quarteto, com o baterista Billy Mintz e o baixista Aryeh Kobrinsky) – com o qual tocámos uma vez – para tocar música dos dois», acrescenta o guitarrista. Mas desta feita tudo foi diferente. «Falei-lhe de marcar uma manhã na sala de ensaios Ibeam, em Brooklyn, da qual ele é membro, e assim sem falar muito sobre o que poderia acontecer. Ele perguntou se eu ia trazer música e a minha resposta negativa foi o tónico para o que veio a acontecer.» os dois habitam universos sonoros próximos; a clareza do saxofone e as paisagens criadas com a guitarra e eletrónicas acopladas são aliadas perfeitas. «Há uma estética que está adjacente no espaço entre mim e o Jeremy. Ele teve a oportunidade de estudar com Steve Lacy. Quando eu cheguei ao NEC este já tinha falecido, no entanto o seu legado e música estavam ainda muito presentes. Essa, muitas outras pessoas e outras linhas comuns fazem com que nos aproximemos a nível pessoal e musical.»
Numa tarde de dezembro de 2022, em menos de duas horas, os dois gravaram pela primeira vez em duo, sem pausas, cada peça num único take, mais tarde sequenciadas no álbum de forma cronológica, preservando o arco emocional experimentado. «Simplesmente montei os microfones e saltámos para o desconhecido. O que se ouve no disco é tal e qual como o gravámos, a mesma sequência. Com exceção de ter encurtado duas faixas, porque se assim não fosse, o disco alongar-se-ia em demasia, não inclui mais nenhuma edição.» Ficou, no final, uma sensação de exaustão, como se tivessem exaurido todas as energias. «Depois, esgotados, fomos comer uma incrível tarte de mirtilos na pastelaria da esquina», recorda o guitarrista. Um doce prémio para quem acabara de gravar música sem qualquer planeamento prévio, de uma sobriedade leve e planante, que de forma vincada valoriza a beleza, o espaço e a espontaneidade.
A configuração instrumental guitarra-saxofone não é muito habitual, mas nada que motivasse desafios particulares para o guitarrista, para quem, atualmente, não é assim tão diferente tocar em duo com qualquer instrumento. Até porque em “On the Shortness of Life” tivera ensejo de explorar duos improvisados com saxofonistas como Nathan Blehar, Noah Preminger e José Soares. («Estive quase a ponto de desafiar o Jeremy também nessa altura, mas depois não se proporcionou», revela.) Ficaram esses sons no seu bornal de ideias e possibilidades. Mas Matos prefere relevar outro aspeto: «Mais importante, é perceber a natureza do outro interveniente. Estar atento e focado. E encontrar ou provocar um espaço e tempo de contraponto, utilizando equilíbrios e desequilíbrios para a música progredir.»
O álbum abre com “As Far As Eyes Can See”, longo prelúdio com quase 14 minutos e ampla paisagem sonora pintada por guitarra e saxofone. Matos surge exímio a atapetar com elegância os trilhos seguidos por Udden; reitere-se a forma singular como o guitarrista dedilha e usa a tecnologia com bom gosto, no que é acompanhado pelo sopro sereno do saxofonista. “The Rings of Saturn”, inspirada nas deambulações de W.G. Sebald pela Cornualha, é improvisação em que os dois músicos partem numa jornada sem rumo pré-traçado, entrelaçando as suas linhas e desafiando-se mutuamente. Em “Ceremonial” emerge um lado ritualístico, uma atmosfera introspetiva e solene. Já em “Stoichiometry” (a estequiometria é o estudo das relações e proporções entre os elementos de uma reação química) parece existir um lado de precisão laboratorial, com a guitarra em equilíbrio com as notas propostas por Udden. “The Mind Wanders” encerra a jornada (o guitarrista diz mesmo que a sensação era a de que haviam «arribado nesse lugar desconhecido»), com a limpidez discursiva do saxofone e numa guitarra que, sim, faz a mente vaguear.
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Wandering Souls (Robalo)
André Matos / Jeremy Udden
André Matos (guitarra elétrica); Jeremy Udden (saxofone alto)