Moor Mother: “Jazz Codes” (Anti-)
ANTI-
Ouvir a discografia de Moor Mother, de seu nome Camae Ayema, por ordem cronológica, é uma viagem recompensadora, mesmo sem incluir colaborações e side-projects. Há descoberta e energia, há um olhar novo e fresco em que a revisitação do passado torna-o futuro. Ela é uma poeta que canta, ou larga spoken-words, ou rappa. É uma produtora, que programa beat boxes e MPC, que vai de um hip-hop lo-fi ao jazz mais limpo e puro; torna-o futuro.
É uma teclista, seja num Casio dos anos 80 quase brinquedo, seja num qualquer sintetizador vintage que alterou em modo DIY. É uma baterista exímia, quer num drumkit clássico em registo jazzístico quer numa das várias drum-machines onde adora avacalhar.
E isto sem entrar nas artes plásticas, poesia e multimédia. Quando começou em 2005, com Rebecca Roe, nos The Mighty Paradocs, passou 6 anos a tocar em bares e a dormir num jeep. 6 anos entre o punk e o rap. Mais tarde, já como Moor Mother Goddess, quer fazer música em casa e por isso, corta e apara a voz de Mahalia Jackson num MPC, junta um velho teclado caseiro, meia dúzia de brinquedos e siga! Tudo muito lo-fi, “as expected”.
“Fetish Bones” (2015), o seu primeiro álbum de forma convencional, tem a maquinaria em estado de sítio. O free jazz, já aqui e no resto da sua obra, é aberto e expansivo, mais próximo dos Art Ensemble of Chicago, aos quais ela despudoradamente presta vassalagem, que do Ornette Coleman da Blue Note. “Fetish Bones”, acompanhado de um livro de 125 páginas de poesia, deu que falar. Da Wire à Pitchfork todos se aperceberam da semente do que estava para vir.
Depois há colaborações, compilações, Laurie Anderson entrega-lhe uma residência, exposições e concertos um pouco por todo o lado, produz álbuns e faixas de quem lhe agrada, remistura quem lhe apetece.
Em 2019, com “Analog Fluids of Sonic Black Holes”, faz-se adulta e abre-se a tudo. Começa outra fase. A colagem já é mais certinha mas a atitude permanece a mesma. Depois há a colaboração com Saul Williams e mais tarde, com o este ano muito na moda Billy Woods, grava Brass. Brass é um hip-hop marado, cena meio industrial, mas não no sentido noise, mais no sentido bricks-on-machines. É um belo disco, cheio de detalhes deliciosos, já com um extenso e eclético número de colaborações, mas onde se percebe a química entre Billy e Camae.
Também neste ano grava com Mental Jewelry, “True Opera”, num registo diferente de tudo (será?), muito punk, noise, avacalhado em distorção, onde ela toca guitarra eléctrica, canta e produz. No fim do ano lança “Circuit City”, álbum “live” sobre uma exposição sua. Registo jazz, quase free, muito ligado ao que estava a acontecer.
Ou seja, sem contar com colaborações e remisturas, num ano edita um álbum de hip-hop, um de punk e um de jazz… Eu disse versatilidade mas queria dizer genialidade porque não é serem géneros diferentes, até porque há tanto que os une, é mais a qualidade nestes seus trabalhos que a torna excepcional.
Em 2021, “Black Enciclopeda of Air” é a “consagração”, com muitas aspas, porque ela não precisa de quem a note e premeie. Só a música importa e a dela importa muito.
E eis-nos em 2022.
Por onde hei-de começar? Os 3 discos deste ano? O Jazz em Agosto com os Irreversible Entanglements? Ou salto tudo e agarro-me a “Jazz Codes”?! “Jazz Codes” é um disco de hip-hop, spoken word, jazz e free jazz, maquinaria em modo DIY, beats lo-fi. É, como o nome indica, uma descodificação da linguagem jazzística, cena do século XXI, uma “hommage” e um mundo de referências.
Há citações de Joe McPhee e metais sacados a Dizzy Gillespie, há o piano de Jason Moran e a sua Philadelphia com Rasheeda Phillips. Um disco extraordinário, um manual de música negra, carregado de colaborações preciosas e géneros diversos. Despretensioso e muito cool, também Jazz Codes tem músicas para quase toda a gente.
Camae Ayema ainda não fez dez anos de carreira e tem perto de cem registos, entre colaborações, remixes, álbuns e tudo o resto. A sua influência mede-se também por quem com ela quer tocar, colaborar, ou apenas quer a sua atitude na produção ou remistura de temas. Entre muitos destacam-se os Art Ensemble of Chicago, Sons of Kemet, Vijay Iyer e The Bug.
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Jazz Codes (ANTI-)
Moor Mother
Moor Mother (samplers, eletrónica, voz)