Gonçalo Almeida: “Improvisations on Amplified and Prepared Double Bass” (Shhpuma) / “Compositions for Double Bass” (Cylinder Recordings)
Shhpuma
Gonçalo Almeida é um escultor de sons que trabalha com detalhe uma complexa e desafiante matéria-prima. Em “Improvisations on Amplified and Prepared Double Bass”, com selo da Shhpuma, e “Compositions for Double Bass”, na sua Cylinder Recordings, o contrabaixista explora, interroga, desbrava novos caminhos. A jazz.pt já os escutou.
Há muito radicado em Roterdão, Países Baixos, o contrabaixista Gonçalo Almeida (n. 1978) tem vindo a repartir o seu trabalho em projetos como Albatre, The Selva, Ritual Habitual, Spinifex e Lama, ou, mais recentemente, The Monkious e Sonitus Missarum. “Improvisations on Amplified and Prepared Double Bass”, com selo da Shhpuma, selo subsidiário da Clean Feed, e “Compositions for Double Bass”, na sua própria editora, a Cylinder Recordings (fundada em 2015 e com um catálogo que importa descobrir), são os seus álbuns mais recentes, ambos a solo.
Já no passado o músico se mostrara particularmente interessado no solitário formato, em “Monologues Under Sea Level” (2015) e “Monólogos a Dois” (2021). Gonçalo Almeida faz um uso total do instrumento, com recurso a diferentes técnicas e abordagens, esticando ao limite (mais elástico do que muitos concebem) as possibilidades que este oferece, seja por si só, seja acoplado a acessórios vários ou a dispositivos eletrónicos. Indaga o futuro do contrabaixo e da música em geral, propondo caminhos ainda não trilhados. Pierre Bastien observa certeiramente nas notas de apresentação que tal como em muitas descobertas importantes, «a sua invenção exigiu mais criatividade do que equipamentos.»
Em “Improvisations on Amplified and Prepared Double Bass” a configuração é simples: apenas o contrabaixo, um amplificador e um pedal de volume. Em entrevista recente à jazz.pt (para reler aqui), Almeida deixou claro: «Acho que o contrabaixo é um instrumento com um potencial tímbrico incrível e com um espectro sonoro muito alargado, pelo qual tenho enorme curiosidade e interesse. As minhas incursões a solo, devem se a essa necessidade de procurar um lugar intimista nas improvisações, como monólogos pessoais.» «Este trabalho reflete a minha inquietação e necessidade de agitação, de procura constante de novas formas, novos caminhos pessoais em que o processo de criação não tem limites, aberto a novas abordagens e novos desafios», acrescentou.
Como o título desde logo esclarece, o que aqui escutamos é produto de momentos únicos e irrepetíveis: «Tudo se modelou no local, na hora de tocar e interagir com o som, as improvisações tomaram forma no espaço, na ação táctil, na construção vs. desconstrução, na composição e transformação momentânea,», explicou então. Analisando os caminhos que o músico trilha, ressalta evidente que continua a haver uma confluência de distintos universos sonoros, dos jazzes ao rock mais duro, passando pela música de câmara contemporânea e pela livre improvisação, que destila numa abordagem muito particular, sempre muito imagética. «Gosto de explorar constantemente diferentes constelações musicais, é uma necessidade pessoal e criativa. Interagir com diferentes músicos/instrumentos e procurar sinergias que levem a resultados variados dá me imenso gozo. É também uma forma de estar constantemente ativo e explorar a música de várias formas, sempre com a experimentação como plano de fundo», realça o contrabaixista.
As sete faixas que integram “Improvisations on Amplified and Prepared Double Bass” deixam claro o papel desempenhado pela interação física entre o amplificador e o contrabaixo: leves movimentos que mudam a posição e a distância entre o corpulento cordofone e a coluna de som para criar feedbacks controlados. O pedal de volume é utilizado para modular distorções; o uso que faz do arco é também especial. A abrir, “I”, a peça mais extensa do álbum, com uma dezena de minutos de duração. Nuvem densa de feedback e distorção a que juntam sons de proveniência ignota, assumindo-se que sejam interações com o corpo do próprio instrumento processadas eletronicamente. A nuvem desvanece-se para logo reaparecer, plúmbea. Em “II” o contrabaixo volta a ser tratado quase como um instrumento de percussão, sobre uma espessa base eletrónica; “III” é ode à distorção, contínua, que obsessivamente se prolonga na alienígena “IV”. A parte “V” parece ser tocada com arco, resultando num som saturado eletronicamente, com pontuais laivos de claridade. Na notável “VI”, Almeida faz quase soar o contrabaixo como se de um longínquo gamelão se tratasse. À sétima e derradeira parte é dado ao instrumento um tratamento mais convencional, pelo menos ao início, mas que paulatinamente se vai tornando tempestuoso. “Improvisations on Amplified and Prepared Double Bass” não deixará ninguém indiferente e isso só pode ser bom.
Também “Compositions for Double Bass” é um disco que reclama audição atenta. Reúne quatro peças de distintos autores, datando de um arco temporal que vai de 2005 a 2022, duas mais curtas e outras duas com duração superior a 15 minutos. A abrir, a solenidade de “MPK” (iniciais que significam “Memoriam for Peter Kowald”), para contrabaixo e eletrónica, peça da autoria de Thanos Polymeneas-Liontiris, compositor, designer sonoro e pedagogo, que sem emular ou citar diretamente Kowald, presta sentida homenagem ao contrabaixista e improvisador alemão que nos deixou fisicamente em 2002. Assumindo que a sua prática mudou desde então, este é um revisitar de memórias e de amizades que marcaram o percurso do grego, numa peça aqui interpretada por Almeida recorrendo alternadamente ao pizzicato e ao arco, em conjugação com elementos eletrónicos. Segue-se a camerística e tecnicamente exigente “Walk”, composição escrita por Michal Osowski em 2007 e revista em 2020. Inspira-se no ato de caminhar, sendo constituída por seções com maior ou menor interligação entre si. A segunda parte da peça assume um pendor mais meditativo, alternado entre passagens mais etéreas com outras mais agitadas, explorando os harmónicos a partir das diferentes técnicas de emprego do arco.
“Mangled Counteract”, a mais curta composição do álbum, é da autoria do baterista, compositor e improvisador Pedro Melo Alves. Notável exercício de depuração, baseia-se na repetição irregular de micromotivos sonoros, provindo de uma fase em que o português estava obcecado pela exploração de pêndulos rítmicos. Recorrendo apenas ao arco, e depois de uma introdução que evoca um certo despertar, a peça entra numa espécie de realidade paralela, com uma pulsação minimalista e um ostinato instável, que evolui para algo de ritualístico. Numa sequência que se afigura lógica do ponto de vista sonoro, o álbum encerra com “A Ritual, More or Less Defined”, para contrabaixo, fita e eletrónicas live, do neerlandês Friso van Wijck, baterista e compositor que tem vindo a partilhar com Gonçalo Almeida várias formações e projetos, desde um jazz mais próximo da norma (ou nem tanto...) até formas mais livres. O título desta composição alude às diferentes notações utilizadas no processo composicional, da mais convencional a partituras gráficas. O resultado são as várias camadas – orgânicas e eletrónicas – que interagem de forma biunívoca, numa permanente alimentação cruzada, criando uma peça de ambiência obscura e misteriosa, que lentamente se vai transmutando.
“Improvisations on Amplified and Prepared Double Bass” e “Compositions for Double Bass” são dois álbuns que, explorando os dois lados de uma mesma moeda, continuam a posicionar Gonçalo Almeida no patamar da excelência. Não sendo tarefa fácil, urge continuar a acompanhar o estimulante dédalo que é a sua atividade.
-
Improvisations on Amplified and Prepared Double Bass (Shhpuma)
Gonçalo Almeida
Gonçalo Almeida (contrabaixo amplificado e preparado)
-
Compositions for Double Bass (Cylinder Recordings)
Gonçalo Almeida
Gonçalo Almeida (contrabaixo)