Spinifex: “Spinifex Sings” (Trytone)
Trytone
“Spinifex Sings” é a nova proposta discográfica do coletivo multinacional Spinifex, agora em formato de octeto, a que à formação base se juntam agora as vozes da indiana Priya Purushothaman e da islandesa Björk Níelsdóttir. Uma inclassificável viagem sonora no tempo e no espaço que a jazz.pt já escutou.
Spinifex é um consórcio multinacional (agora octeto) baseado em Amesterdão, que tem conhecido diferentes configurações ao longo do tempo que já leva de existência, mais de uma década. A formação base inclui atualmente o saxofonista alto alemão Tobias Klein, o trompetista flamengo Bart Maris, o saxofonista tenor norte-americano John Dikeman, o guitarrista neerlandês Jasper Stadhouders, o baixista (e contrabaixista) português Gonçalo Almeida e o baterista Philipp Moser.
Para trás, ou nem tanto, deixam seis registos gravados, demostrativos da amplitude de movimentos do grupo, que incorpora elementos de diferentes tabuleiros estilísticos, do free jazz ao punk rock, passando por estruturas complexas derivadas da tradição erudita e de músicas dos quatro cantos do planeta: “Hipsters Gone Ballistic” (2014), “Maximus” (com a formação estendida a uma quase big band de 13 elementos, incluindo nove sopros e duas baterias, mais guitarra e baixo) e “Veiled” (2015), “Amphibian Ardour” (de 2017, que incluiu leituras de tradicionais sufi de origem curda/iraniana e qawali do Paquistão), “Soufifex” (2019) e “Spinifex Beats The Plague” (2021).
Agora, é caso para se dizer que Spinifex abriu a boca e cantou, embora, em rigor, isso não seja propriamente uma novidade. Para o novo álbum, gravado em julho de 2022 nos estúdios Namouche, em Lisboa (já “Amphibian Ardour” o havia sido), o grupo alargou-se e passou a incluir duas vozes femininas – Priya Purushothaman, baseada em Mumbai, Índia, e a islandesa Björk Níelsdóttir –, que aportam substantivos predicados técnicos, que contribuem de modo decisivo para que o resultado final seja algo de muito especial. Priya vem da rica tradição musical do hindustão e Björk (não confundir coma a autora de “Medúlla” ou do recente “Fossora”), da erudita contemporânea, do teatro musical e da improvisação.
Com uma capa que parece remeter para o logótipo dos Rolling Stones com caninos mais pronunciados, “Spinifex Sings”, com selo da Trytone adentra-se no domínio da canção, do spoken word, das tão díspares poesia tâmil e islandesa, antiga e contemporânea. O projeto foi apresentado pela primeira vez em março de 2022, no Bimhuis, na capital dos Países Baixos, tendo depois subido a palco em Lokeren e Oostende, na Bélgica, e em junho no festival de Moers na Alemanha, seguido de uma mini-digressão por Portugal, presença aproveitada para ir para estúdio. «Spinifex já havia trabalhado com a cantora Priya Purushothaman em 2014, para o projeto “Bollycore”, que também incluiu a dançarina Maya Sapera», começa por dizer Tobias Klein à jazz.pt, «uma das diferenças em relação a “Bollycore” é que não trabalhámos com textos.» Para “Spinifex Sings” uma das ideias centrais era usar textos, explorar formas relacionadas com canções, em vez de tratar a voz apenas como um instrumento. «Estávamos à procura de um tipo diferente de dinâmica que viesse com textos cantados e falados. Um tipo diferente de expressividade e intensidade. Para além disso, há muito tempo que era um sonho trabalhar com Priya e Björk, especificamente. São duas cantoras maravilhosas, muito diferentes uma da outra, mas trabalhando muito bem juntas», acrescenta o saxofonista.
A música apresentada em “Spinifex Sings” é caleidoscópio sonoro que a cada momento interpela o ouvinte e que saudavelmente desafia catalogações espúrias (andam por aí muitos ouvidos policiais que não gostam de desafios). O próprio Klein não aprecia definições: «Qualquer pessoa que apresente uma boa definição receberá um CD grátis! Quando começámos com a atual formação principal, por volta de 2010, todos tínhamos origens bem diferentes. Por alguma estranha coincidência, tocar juntos correu realmente bem. Então descobrimos que poderíamos absorver influências muito diferentes e ainda soar como a mesma banda a todo o tempo.»
Muito interessante é a intensa comunicação entre as diversas peças do xadrez sonoro e a forma como o grupo gere o sempre instável equilíbrio entre estruturas composicionais complexas e a liberdade e urgência das improvisações. «Isso depende muito da peça específica», explica Tobias Klein. «Algumas partes podem ser 100% escritas e corrigidas, enquanto outras partes podem ser 100% improvisadas. Às vezes, o material escrito é usado para desencadear e alimentar a improvisação, às vezes a improvisação é usada para enriquecer uma estrutura composta.» Todo este processo é fluido e imprevisível: «Uma peça pode começar com uma seção composta e fixa, mas com o tempo capturamos a ambiência e a intenção, e então podemos abandonar as notas fixas e apenas improvisar.» O saxofonista salienta os papéis desempenhados pelas duas cantoras neste cômputo: «Ambas são improvisadoras maravilhosas, mentes muito abertas e destemidas. Ainda estou surpreso como elas conseguiram entrar no mundo Spinifex, permanecendo 100% fiéis à sua própria identidade.»
Da autoria de Jasper Stadhouders, “A Faint Smell of Meat” inicia a jornada em alta rotação, verdadeiro festim de sopros, guitarra abrasiva, secção rítmica poderosa, vozes de registo por vezes quase operático. A dado momento somos transportados pela voz de Pryia para o subcontinente indiano, através das palavras de S. Sukirtharani, poeta, feminista e ativista, que escreve em tâmil. (Algum do seu trabalho foi traduzido para inglês por Lakshmi Holmström, tendo sido publicado na coletânea “Wild Girls Wicked Words”). Em absoluto contraste, “Flaekja”, com música e letra de Björk Nielsdóttir, é serena e delicada, com a voz da islandesa e o saxofone de Klein em notável dueto.
Segue-se a suíte “Ore Badil” (que numa tradução livre significa algo como “A Minha Única Resposta”), dividida em duas partes: “A Divine Tongue” e “Here”, da autoria de Tobias Klein e baseado em três poemas do escritor tâmil Perumal Murugan, acusado de blasfémia e atacado por grupos religiosos após a publicação do seu romance “One Part Woman”. «Tendo sido forçado a retirar o romance, começou por assumir-se como um escritor acabado. No entanto, foi reabilitado e prometeu proteção futura para escritores em situações semelhantes, tendo continuado a sua carreira literária», conta Klein. Em “A Divine Tongue”, o escritor verte a sua raiva nas palavras, desejando amaldiçoar aqueles que o perseguiram, mas a sua “língua divina” não o deixa. Regressa o poder da massa sonora, fumegante caldeirão onde vários elementos são cozinhados em simultâneo. A voz de Pryia tem mais uma vez o condão de nos fazer viajar, desta vez para os territórios do teatro musical, que rapidamente se transforma em algo diferente, poderoso, urgente. Composição saída da pena do trompetista Bart Maris, “Lal Ded 119” baseia-se num texto da poeta e mística da Caxemira do século XIV, de filosofia hindu, Lalleshwari (conhecida como Lal Ded), em que os uníssonos entre as vozes e os sopros dão o mote para um groove nutrido, com a voz a contribuir para uma atmosfera mágica. Do arranjo erguem-se ótimos solos de trompete e do saxofone. Um interlúdio do contrabaixista em diálogo com a voz encerra a peça em tom tranquilo. A peça seguinte, de Gonçalo Almeida, é intitulada na língua de Saramago, “O Desmaio”. Espasmos trazem a voz de Priya Purushothaman, que cria uma mantra hipnótica, apenas acolitada pelo baixo e por sons eletrónicos subtis, que lançam os saxofones numa espécie de dança.
“Earth”, com música de Klein e poema de Nielsdóttir, assume contornos mais abstratos, com uma multiplicidade de sons que se entrecruzam e em permanente mutação, como uma banda sonora para o conturbado planeta que, até ver, habitamos… A peça final do álbum, “Deep Archer” – a única que não foi escrita especialmente para esta formação, embora faça parte do repertório do Spinifex Sings desde o início – encerra-o num tom esperançoso, mais uma vez guiado pela voz encantatória que deambula livre sobre uma base que se aproxima das figuras criadas por uma big band de jazz “clássico”. Instala-se a festa e as vozes conduzem a peça ao silêncio final.
“Spinifex Sings” é uma intensa e profunda aventura musical a cargo dos sempre entusiasmantes Spinifex, que combina música e palavras, passado e presente, e que recompensará as mentes e os ouvidos que buscam a descoberta.
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Spinifex Sings (Trytone)
Spinifex
Priya Purushothaman (voz); Björk Níelsdóttir (voz); Tobias Klein (saxofone alto); Bart Maris (trompete); John Dikeman (saxophone tenor); Jasper Stadhouders (guitarra elétrica); Gonçalo Almeida (baixo elétrico); Philipp Moser (bateria)