Pedro Neves Trio: “Hindrances” (Carimbo Porta-Jazz)

Pedro Neves Trio: “Hindrances” (Carimbo Porta-Jazz)

Carimbo Porta-Jazz

António Branco

Colhendo inspiração nos ensinamentos da filosofia budista, “Hindrances” é o quarto álbum do trio liderado pelo pianista e compositor portuense Pedro Neves, acompanhado pelo contrabaixista Miguel Ângelo e agora pelo baterista José Marrucho. Como sempre com chancela do inescapável Carimbo Porta-Jazz. A jazz.pt já o escutou.

Os contornos pitagóricos do formato de trio “clássico” piano-contrabaixo-bateria continuam a constituir-se como fonte de insondáveis mistérios e a ser meio de expressão privilegiado para praticantes dos três instrumentos. Muito deste território já terá sido certamente garimpado, mas há sempre novos filões por descobrir. Fluxo permanente feito de construções, desconstruções e reconstruções, numa configuração instrumental que é tudo menos estanque.

O pianista e compositor portuense Pedro Neves (n. 1978), nome maiúsculo da cena do jazz da Invicta vai para duas décadas, tem erguido um corpo de trabalho que, solidamente fundado na tradição do género, arrisca sempre um passo em frente, ainda que partindo das premissas basilares, para chegar mais além. «Tem sido esse o desafio destes anos. Manter o caráter da tradição enquanto formação, dos códigos linguísticos que a caracterizam, mas, ao mesmo tempo, sem perder identidade musical, ser capaz de fazer coisas novas», começa por referir à jazz.pt. Seja na composição, na abordagem estrutural dos temas ou na busca de articulações com outras sonoridades estéticas. «Para mim o jazz é sobretudo uma forma de estar na música, na composição e na improvisação. Permite-me ser músico e sem condicionar ou ter de rotular o que faço enquanto músico e compositor», acrescenta.

“Hindrances” é o novo elo de uma cadeia que se iniciou com “Ausente” (2013) e depois continuou com “5:21” (2016) e “Murmuration” (2019), como sempre no Carimbo, braço editorial da Associação Porta-Jazz. Ao quarto disco, Neves entendeu que chegara o momento para uma reflexão acerca do caminho estético construído nos tomos anteriores, e sobre os caminhos que o trio pode trilhar no presente e no futuro, não apenas no plano composicional como da forma como essas composições são abordadas. Para além de uma identidade própria, se há aspeto que logo transparece é o refinamento das composições, vertidos numa maturidade melódica e sofisticação harmónica que acresce ao logrado nos registos anteriores. «Considero este novo disco um disco maduro, que retirou dos álbuns anteriores muitas das coisas boas que fizemos e consolidou uma linguagem e estética, através das experiências que fomos fazendo juntos enquanto trio», salienta o pianista. «As próprias estruturas dos temas foram desenhadas como um caminho, onde a forma exposição-desenvolvimento-conclusão foi confrontada e redefinida. Foi pensado para ser ouvido do início ao fim, para acompanhar a narrativa que o inspirou.»

Continua a ser um disco de canções, que concorrem para um cômputo elegante e coerente, mas é também conceptual, movido por um conceito central, a subida a uma montanha e respetivos entraves (as “hindrances” a que o título alude). A ideia radica nas pesquisas que o músico fez no vasto campo da filosofia budista. «Há um monge budista que explica muito bem este conceito numa TED Talk e eu inspirei-me nas suas palavras para dar forma ao conceito do disco. As dificuldades e entraves são facilmente relacionáveis com o nosso quotidiano. Todos temos as nossas. Não são esses obstáculos que o disco procura descrever. “Hindrances” é uma busca pessoal interior. Através do reconhecimento e aceitação das nossas limitações, procurarmos ser melhores», complementa.

Se no contrabaixo continua Miguel Ângelo, peça fundamental nesta engrenagem criativa, com a sua abordagem sólida e inventiva, na bateria está agora o seguríssimo José Marrucho, cujo trabalho, por exemplo, com o Coreto ou nos grupos do saxofonista João Mortágua, há muito merece encómios. Substitui Leandro Leonet, que ocupara o lugar nos registos anteriores do trio (colaboração que remontava a 2003, quando Neves fundou o seu primeiro trio, Pé Descalço) e que, logo no início do processo de preparação deste disco, optou por fazer uma pausa em alguns projetos de que fazia parte. A vontade de que este disco saísse em 2022 motivou uma incompatibilidade temporal que abriu a porta a Marrucho, músico com quem o pianista tocou pontualmente ao longo da última década e meia: «Ainda durante a pandemia tivemos a oportunidade de fazer um concerto live streaming na Porta-jazz e logo aí percebi que era a pessoa certa para este disco. A integração foi muito intuitiva, e o Marrucho percebeu rapidamente como podia servir a música.» Há por isso novidades em termos rítmicos e tímbricos, para além de uma nova dinâmica que trouxe para a formação. «Eu e o Miguel aproveitamos esta novidade para também crescermos e evoluirmos enquanto trio.»

Os compassos iniciais do disco, na peça que lhe dá título, dizem tudo. Neves, com o seu toque delicado, introduz com notável fluidez a linha axial; entram contrabaixo e bateria, instalando-se um jogo rítmico e melódico em permanente mutação, alternando passagens mais ternas com outras mais vigorosas; Ângelo, que assina a primeira de muitas valorosas intervenções, ampla e de grande musicalidade, como que a unir as diferentes peças do puzzle, e um delicadamente assertivo Marrucho revelam como formam uma soberba dupla rítmica. A monumentalidade melódica inicial de “Pictures I Would Like To Show You” – peça que parece subdividir-se em três andamentos de atmosfera distinta, ainda que a partir de uma mesmo motivo-base – é explanada em apertada articulação entre piano e contrabaixo, dando lugar a um swing viçoso de travo clássico (o que é novidade para o trio), com Neves exemplar na forma como tergiversa a cada instante, sem largar porém o fio. A três minutos do fim tudo muda e a peça ganha asas.

Acontece então o primeiro de dois momentos que de alguma forma interrompem o fluxo narrativo, como que dois pontos de paragem na viagem, sob a forma de peças mais curtas e contrastantes com as demais. Menos carregada emocionalmente é “One Mile of Walking”, cuja sonoplastia foi efetuada durante um intervalo numa das escolas onde o pianista leciona, adequado paralelismo entre as várias realidades presentes no seu quotidiano. Assentando numa ideia melódica simples e numa harmonia tonal, “Development of Behavior” é intensa e enérgica, exponenciado uma interação da qual emergem nuances rítmicas e harmónicas, avultando o magnífico solo do baterista no ocaso da peça. A inquietude de “Experience of Clarity” remete para certas construções que escutamos nos registos anteriores do trio, evidenciando uma estrutura mais convencional de tema-solos-tema, com o contrabaixista de novo em destaque.

“Bumpy Roads” não começa pedregosa ou acidentada, mas desliza num pavimento suave, com um motivo claro explanado pelo piano e em que o contrabaixista elabora. Marrucho volta a destacar-se pela leveza. “Two Miles of Walking” é tour-de-force para o baterista, que lança uma peça em que a adrenalina representa um momento eufórico, mas também de delírio perante o pico da montanha, cada vez mais próximo. O culminar da jornada chega com a sereníssima “Meet You At The Peak”, em tom mais contemplativo do que de inócua exultação.

Momento maior no percurso de Pedro Neves, “Hindrances” expande vistas e reforça o lugar entre os trios de piano mais interessantes do jazz nacional.

 

  • Hindrances

    Hindrances (Carimbo Porta-Jazz)

    Pedro Neves Trio

    Pedro Neves (piano); Miguel Ângelo (contrabaixo); José Marrucho (bateria)

Agenda

23 Março

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23 Março

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