Lynn Cassiers / Manolo Cabras / João Lobo: “Dancing With Don” (Robalo)
Robalo
“Dancing With Don”, com selo da Robalo, é o novo disco que reúne a cantora e manipuladora de eletrónicas belga Lynn Cassiers, o contrabaixista italiano Manolo Cabras e o baterista português João Lobo. Uma fascinante aventura sonora que a jazz.pt já o escutou.
Vem de longe a teia de relacionamentos entre a cantora e manipuladora de eletrónicas belga Lynn Cassiers, o contrabaixista italiano Manolo Cabras e o baterista português João Lobo. Os três músicos têm vindo a colaborar em projetos de diferente natureza, cada um explorando o seu espaço peculiar no eixo entre o jazz e a música eletroacústica improvisada.
Conheceram-se no Conservatório da Haia, nos Países Baixos, onde fizeram inúmeras sessões, grupos e gravações. Uma dessas muitas gravações enquanto estudantes foi precisamente com este trio. Os três acabaram depois por ir parar a Bruxelas, com Cabras a ser uma espécie de batedor, por ter sido o primeiro a mudar-se e quem mais tocava na cena belga. Cassiers tocou em vários grupos de Cabras (como Basic Borg); reciprocamente, o contrabaixista nos da cantora (Yun, por exemplo); Cassiers num grupo de João Lobo e de outro Lobo, Norberto (Oba Loba). Lobo e Cabras formaram muitas vezes a secção rítmica de grupos (como o Manuel Hermia Trio) e os três (e talvez venha daí grande parte da “linguagem” apurada neste disco) fazem parte de um quarteto com o saxofonista italiano Riccardo Luppi, Mure Mure, que gravou “Live in Milano”. E as colaborações parecem não ficar por aqui.
Uma cumplicidade que acaba de conhecer um novo capítulo, com a edição de “Dancing With Don”, novo disco com selo da Robalo, onde encontramos uma combinação de elementos sónicos díspares, tratados livre e habilmente para contruir uma música frágil e elegante. Tudo começou de forma espontânea, como três amigos que se juntam para explorar sons e texturas, como fazem amiúde: «O disco vem de uma sessão feita na casa/estúdio do Manolo e Lynn sem haver intenção de fazer um disco. Ao ouvirmos a sessão ficámos os três convencidos de que tínhamos de editar daquilo. Havia magia», começa por dizer João Lobo à jazz.pt. E numa altura em que todos estavam a sair dos vários confinamentos, períodos em que cantora e contrabaixista tinham tocado muito em duo. «Foi isso o que mais me marcou durante a sessão: sentir que os dois estavam tão sólidos que o que quer que eu fizesse estava a soar bem», completa o baterista.
Não houve qualquer preparação prévia para a gravação, se excetuarmos a montagem dos microfones e da bateria. E foi Cabras o responsável por tudo isso: «Até montou a bateria com muito mais elementos do que costumo usar. Acho que nem as baquetas eram minhas. Ele queria até experimentar gravar com certos microfones», explica João Lobo. Foi o baterista português quem mostrou a gravação a Gonçalo Marques, trompetista e responsável da Robalo, que logo entendeu a música como muito interessante e original. O que aqui escutamos é um disco de jazz livre e totalmente improvisado, «no momento, sem pretensões», como realça o baterista, um encontro de três músicos que tocam juntos há muito tempo e para quem a música se faz de urgência e espontaneidade.
O Don do título é o seminal trompetista Don Cherry (1936-1995). «Foi o Manolo a sugerir o nome num dia em que estava literalmente a dançar ao som do Don Cherry. Mas não sei que disco era.» A música de “Dancing with Don” é muito detalhada, cheia de recantos misteriosos por explorar e profundamente imagética. Em especial, a bateria de Lobo é de uma leveza impressionante. «Era tudo material do Manolo. Eu sentei-me e era como uma criança numa ludoteca. Estava a descobrir aquele set, sem pretensões, até porque não estávamos a gravar um disco», esclarece. Tudo acaba aqui por ser orgânico. A eletrónica utilizada por Lynn Cassiers funciona como uma extensão da sua própria voz e o todo é um e um só instrumento.
As primeiras notas de “Wrong Exit”, introdução à jornada, logo captam a atenção do ouvinte; entra-se numa espécie de dimensão paralela, com a voz natural de Cassiers a fundir-se com as eletrónicas que a processam, em contraste com as percussões orgânicas. Cabras recorre ao arco para adicionar solenidade. “The Mermaid's Boots” tem o contrabaixista de novo a recorrer ao arco, percussões de filigrana e vozes fantasmagóricas. Acaba por funcionar como uma espécie de segunda introdução, como que a alertar quem escuta («prepara-te para a viagem que isto vai a vários lugares», como sublinha o baterista a propósito). “Baroness” – assim intitulado porque a dado momento a cantora cita “Pannonica” de Thelonious Monk, dedicado à sua protetora, a baronesa Pannonica de Koenigswarter – com a sua atmosfera mais relaxada, voz em registo límpido e mais próximo do universo do jazz, mostrando Cabras possante e Lobo sempre inventivo. Há uma camada eletrónica que a dado momento se instala, aditando enigma a uma das peças mais interessantes do disco.
Notável paisagem sonora, “Nasty Nest”, quase field music, mostra os instrumentos a furtarem-se a missões funcionais. “The Elephant and the Whale” é uma fábula de embalar, balada improvisada com a voz etérea de Cassiers, em estreita ligação melódica e harmónica com o contrabaixo, e atapetada pelas percussões delicadas do português. “Bottulusu and Bottuleddusu”, por onde a sessão começou, tem cantora e baterista a improvisarem em conjunto, ainda o contrabaixista ajeitava o seu instrumento e verificava se tudo estava a funcionar. Estava. Os timbalões propõem uma base sobre a qual a cantora paira. Em “Dancing with Don” os três músicos articulam com precisão as peças deste fino mecanismo, com a voz mágica, Cabras a improvisar em jeito de canção e Lobo a propor um ritmo que nos transporta para um lugar imaginário algures entre Nova Orleães e Marraquexe. Lynn Cassiers improvisa no final uma história que se torna obsessiva.
A atmosfera onírica de “Walking Peaches” resolve a questão das dimensões orgânica e eletrónica desta música, esbatendo a estrema. O epílogo desta viagem acontece em “Firulì Firulà”, com Cassiers encantatória, uma extraordinária camada urdida por Cabras (de novo recorrendo ao arco) e a relojoaria rítmica de Lobo. Um final notável para um álbum que se revela em todo o seu esplendor em sucessivas audições. Dancemos, pois.
-
Dancing With Don (Robalo)
Lynn Cassiers/Manolo Cabras/João Lobo
Lynn Cassiers (voz e eletrónicas); Manolo Cabras (contrabaixo); João Lobo (bateria)