Bernardo Tinoco & Tom Maciel: “NoMad Nenúfar” (Clean Feed)
Clean Feed
O saxofonista Bernardo Tinoco e o pianista Tom Maciel propuseram-se a sair das suas zonas de conforto. Convidaram ainda o baterista João Lopes Pereira, que participa em alguns temas. Nesta nova edição da Clean Feed, o duo (às vezes transformado em trio) revela uma música profundamente original.
Bernardo Tinoco é um dos talentos emergentes da novíssima geração do jazz português. Integra o quarteto Garfo (com João Almeida, João Fragoso e João Sousa) e tem colaborado com os grupos Pedro Moreira Sax Ensemble, Apophenia e Nazaré da Silva Quinteto. O saxofonista prepara um novo trio com André Carvalho e Diogo Alexandre e está envolvido num projeto do contrabaixista italiano Pietro Paris. Também muito jovem, o pianista Tom Maciel é um músico que tem atravessado diferentes geografias musicais. É um dos membros do trio Cíntia, que surpreendeu o universo jazzístico nacional ao editar o disco “Sítio” (Cena Jovem jazz.pt). No início deste ano tocou num trio com Rodrigo Amado e João Lencastre, mas o pianista e teclista, que não se cinge ao jazz e à improvisação livre, tem tocado com diversas bandas e músicos – whosputo, Polivalente, Tyler Faraday e Evaya, entre outros.
Músicos com personalidades musicais já bem definidas, Tinoco e Maciel juntaram-se e propuseram-se a sair das suas zonas de conforto. E daqui resultou mais um “disco da pandemia”. Numa entrevista recente à jazz.pt, Bernardo Tinoco contou o processo que levou a este disco: «Na altura da pandemia vivíamos ambos nas casas dos nossos pais, que eram bastante próximas. Eu ia para casa dele, onde ele tinha o piano, e tocávamos... A dada altura houve a hipótese de fazermos um concerto na SMUP [na Parede], o Rui Eduardo Paes convidou o Tom para um dia com “carta branca”, para fazer dois concertos com músicos diferentes. Resolvemos escrever música original para um destes concertos e assim foi.»
Ainda que sejam um duo de saxofone e piano, a ideia dos músicos era afastarem-se do som habitual dos respetivos instrumentos: «Uma coisa que nos interessava bastante era usar as valências do multi-instrumentalismo, eu toco quatro instrumentos de sopro (dois saxofones, flauta transversal e duduk, um instrumento arménio com um som lindo) e o Tom toca piano, sintetizadores e drum machine.» O disco abre com Tinoco no duduk, num registo suave; entra depois o piano de Maciel, com ambos os músicos alinhados em uníssono, seguindo a melodia; por volta dos três minutos e meio, o ambiente muda com a adição de um padrão rítmico eletrónico; Tinoco muda para o saxofone, saxofone e piano alteram a toada, ativados pela marcação do ritmo; depois, vão-se desdobrando, às voltas do tema, numa interessante viagem que passa dos dez minutos de duração.
Para o disco, Tinoco e Maciel decidiram chamar ainda o baterista João Lopes Pereira, que toca em três músicas. Conta Tinoco: «O contributo dele em qualquer contexto musical é super valioso e ajudou bastante para acrescentar alguma coisa que pudesse faltar na música. Ele foi escolhido estrategicamente para tocar naquelas músicas em que poderia faltar algo. E não lhe demos muita informação, dissemos “olha, gostávamos de ouvir isto contigo a tocar, toca o que quiseres”, fizemos dois takes para cada uma e escolhemos um.» A bateria de Pereira consegue sempre acrescentar valor, seja em pura improvisação livre, no grupo Peachfuzz ou no trio de Ricardo Toscano (que acaba de lançar o novo “Chasing Contradictions”, cuja apresentação ao vivo no Hot Clube testemunhámos aqui). Neste contexto, não é diferente e a presença de Pereira acrescenta novas cores ao universo de Tinoco e Maciel (nas faixas 2, 3 e 4).
Ao segundo tema (“Out”) é o piano que abre, entrando logo depois a flauta e bateria, bem interligados, juntando-se ainda pozinhos do sintetizador. Apesar de curto (dois minutos), o trio consegue criar um ambiente envolvente e vibrante, deixando o ouvinte com vontade de mais. O terceiro, “Provisoriamente sem título” arranca numa toada lenta, lamentosa, com o saxofone de Tinoco a explorar sentimento, sublinhado pelas notas pingadas do piano; o saxofone vai depois explorando e acelerando, até que o trio se volta a reencontrar na melodia do tema; o piano toma depois as rédeas, navegando sem terra à vista, até que o saxofone se envolve, crescendo para um momento de maior tensão coletiva (este tema é outra longa exploração, de nove minutos).
Chegados à quarta faixa, “Este comboio já para em Arroios” (a mais longa, com catorze minutos), piano e saxofone arrancam devagar, com intervenções espaçadas, o saxofone de Tinoco assume a liderança, Maciel troca o piano pela eletrónica, disparando elementos em contraste com o saxofone; a bateria vai entrando, marcado presença, mas desta vez mais discreta; e o piano regressa depois, retomando a melodia do tema. Para fechar, “5 minutos” (título enganador, o tema passa dos 7), Pereira já não participa: o piano arranca cristalino, até que entra o saxofone, num diálogo articulado; o saxofone assume então o discurso, acrescentando-se depois subtilezas eletrónicas.
Se o formato de saxofone e piano já não será muito comum, esta abordagem dá volta a tudo aquilo que se poderia prever. Ao contrário do que se poderia antecipar, neste encontro musical a vertente de composição é forte e assumida, sendo a base de cada tema, à qual os músicos sempre regressam. A música deste duo-às-vezes-trio revela-se assim profundamente original, uma exploração criativa assente no diálogo instrumental que, tendo raízes no jazz e na improvisação, propõe diferentes caminhos e direções. A solução nunca é óbvia, desafia constantemente o ouvinte. Que boa surpresa.
-
NoMad Nenúfar (Clean Feed)
Bernardo Tinoco & Tom Maciel
Bernardo Tinoco (saxofone alto, saxofone tenor, duduk, flaut); Tom Maciel (piano, sintetizadores, drum machine); João Lopes Pereira (bateria – faixas 2, 3 e 4)