Cícero Lee: “Resilience” (AsUR)
AsUR
A palavra “resiliência” entrou de rompante no nosso léxico quotidiano: na política e economia, nas questões ambientais e climáticas, nas infraestruturas, na saúde pública. É também este o conceito central do quarto álbum como líder do contrabaixista e compositor Cícero Lee, ao lado do pianista Carlos Garcia e do baterista Joel Silva, com selo da AsUR. A jazz.pt já o escutou.
O trio “clássico” de piano, contrabaixo e bateria é uma árvore frondosa na floresta do jazz, que tantos frutos saborosos nos tem oferecido ao longo das décadas. Também em Portugal o formato continua a ser veículo preferencial para expressão artística de vários pianistas, bateristas e... contrabaixistas. É este o caso de Cícero Lee (n. 1982), músico que com o pianista Carlos Garcia e o baterista Joel Silva apresenta o seu novo álbum, “Resilience”.
Todos apresentam sólidas e reconhecidas credenciais, evidentes em múltiplos trabalhos, na área do jazz, mas não apenas. Cícero Lee iniciou a sua carreira profissional em 1999, tendo desde então feito parte da cena musical lisboeta. Já tocou e gravou com muitos nomes de relevo, como José Mário Branco, Sérgio Godinho, Carlos do Carmo, Luís Represas, Ivan Lins, ou, no campo do jazz, Júlio Resende, Victor Zamora, Pedro Madaleno, José Salgueiro, Elisa Rodrigues ou Desidério Lázaro, para apenas mencionar alguns. Na bateria está Joel Silva, músico de toque inventivo e vigoroso, também líder por direito próprio (“Geyser”, de 2014, é registo que reclama sucessor), alguém cujo rol de colaborações fala por si. Porventura menos conhecido no universo do jazz, o pianista Carlos Garcia tem trilhado um percurso que passa pela performance, composição, escrita de canções e na educação musical para a infância, tocando com músicos de diferentes quadrantes. Desde 2019 é maestro da Orquestra Todos, uma formação multicultural constituída por músicos a residir em Lisboa.
Com chancela da editora independente AsUR, “Resilience”, o quarto álbum de Cícero Lee na condição de líder, surge na sequência de “Ventos” (2013), “Those Who Stay” (2015) e “Na Casa da Nuvem” (2020). Em “Resilience” o trio que lidera explora com sobriedade e rigor os recantos do formato, evidenciando riqueza melódica e elegância harmónica, potenciadas pelas interações apertadas que a geometria permite. O título do álbum surgiu a Lee, inicialmente, na sequência do tema de abertura, “A Clown’s Resilience”, mote que espoletou esse debate consigo próprio. Reflexo de todas as suas experiências, a música que se escuta em “Resilience” foi composta e gravada num contexto particularmente difícil, quando a pandemia lançou o seu manto de isolamento e incerteza para muitos, em especial os agentes culturais. «A capacidade de resistir e recuperar, diria também de sofrer, está sempre presente na vida de um artista. Tanto ao nível social – as obrigações do dia a dia não se compadecem com a nossa impermanência – como ao nível emocional e intelectual», começa por dizer à jazz.pt. «Concluí que “Resilience” seria o termo certo para compilar estas ideias, em conjunto com a situação global vivida – que na altura da composição não era tão grave como é agora. Isto tornou a escolha do título quase obrigatória», acrescenta.
Dando continuidade aos registos anteriores, o novo disco acaba por ter um novo input, o resultado criativo da tal resiliência, mas também é resultado de um lastro de colaborações entre os três músicos, em vários contextos, que vai para década e meia. «É um trabalho mais meticuloso que os anteriores, no sentido em que pude refletir amplamente acerca de cada uma das peças e dar-me ao luxo de ter tempo para produzir algo que fosse totalmente ao encontro do meu propósito enquanto músico, compositor, artista», sublinha o contrabaixista. O álbum é constituído por uma coleção de peças todas de sua autoria (o que acontece pela primeira vez; todos os outros tiveram participações ou alguma flexibilidade na fase de arranjos), o que demonstra que a um dotado instrumentista se soma um desejo de afirmação enquanto compositor, num quadro onde a dimensão melódica joga um papel fundamental: «Para mim, por exemplo, a dissonância tem um certo valor que me liga à poética, mas na construção de melodias deve servir a consonância, no sentido em que é necessária, mas deve ser transitória. Ao quarto disco noto que esse é o meu padrão: não colocar em causa a criação de uma melodia apenas para satisfazer ornamentos ou passagens cujo valor não tem objetivo melódico.»
A aposta no formato foi amadurecida e permitiu-lhe dar pleno ênfase à música que escrevera. «O piano, em detrimento da guitarra, por exemplo, oferece o espaço certo e ressonância para que estas melodias “vivam” e que possam também ser interpretadas pelo contrabaixo. Esta amplitude sonora ganha importância neste repertório. Gosto muito de trios com guitarra, mas ainda não escrevi nada que me parecesse adequado a essa instrumentação.» A possibilidade de gravação surgiu após um concerto no Liceu Camões, evento que permitiu uma certa mobilidade em tempos pandémicos. A música foi apresentada a pianista e baterista, que tiveram tempo para a digerir; seguiu-se uma fase de discussão e a gravação. Este processo também colocou a Lee outros desafios: «O disco foi gravado por mim na Interartes, a minha segunda casa. Optei também por me colocar à prova e misturar e masterizar o disco. Gostei da experiência e do resultado.»
O álbum abre precisamente com “A Clown’s Resilience” peça que reflete o que observa como sendo a resiliência que um/a palhaço/a tem que cultivar para entrar e sair do/a personagem, com tudo o que isso implica. («Um palhaço disse-me uma vez: «O palhaço é sempre verdadeiro, é diferente de um ator, nunca mente. Os músicos também são assim.») O contrabaixo adquire um lugar central (traço comum à maioria das peças) e não apenas quando sola (e bem). Lee explana graciosamente a ideia, em que o piano elabora; Silva aporta aquela elegância que há muito lhe reconhecemos. “Sefarad” (península ibérica, em hebraico), traz ecos reminiscentes da tradição sefardita (desde logo acorrem ao pensamento as aventuras musicais de João Paulo Esteves da Silva), adquirindo depois contornos mais intensos. Novos solos afirmativos de Lee e do pianista ajudam a erguer uma das mais interessantes peças do álbum. “Legrand’s Bolero”, inspirada na obra do pianista e compositor francês, evoca os pores do sol na zona de Sintra. Mais enérgico é “Papoite Blues” (“papoite” é um termo usado em Angola para dirigir a alguém uma saudação fraterna), com as notas cavas do piano a desenhar o motivo-base, que lança nova intervenção do contrabaixista. Silva cumpre com requinte as funções que lhe estão confiadas e um repto (“Joel!”) embala para o final.
O contrabaixista introduz o cativante “Varanda”, que lembra certas passagens criadas por Carlos Barreto e José Salgueiro. Ao balanço pop divertido de “Smile (For a Cliché)” segue-se, contrastante, a melodia noturna de “Not Too Late”, exposta pelo líder, com o pianista a desenvolver a ideia e o baterista a aditar delicadeza. Na harmonicamente menos convencional “Cross the Line”, a linha de contrabaixo – em uníssono com a mão esquerda do pianista – assume lugar pivotal na construção de uma peça luminosa, dela avultando a secção final, com Joel Silva a propor um epílogo tranquilo.
“Resilience” é o testemunho maior da relevância de Cícero Lee enquanto instrumentista e compositor de mérito.
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Resilience (AsUR)
Cícero Lee
Cícero Lee (contrabaixo); Carlos Garcia (piano); Joel Silva (bateria)