Sérgio Pelágio: “Riff Out” (Real Pelágio)
Real Pelágio
O regresso de Sérgio Pelágio ao jazz é sempre motivo de júbilo. Trinta anos (trinta anos!) depois de com o seu projeto Idefix ter editado “Idefix Live (at Hot Clube de Portugal)”, o guitarrista e compositor lisboeta está de volta aos discos de jazz em nome próprio com “Riff Out”. A jazz.pt já o escutou.
Sérgio Pelágio (n. 1965) é um guitarrista histórico, embora os seus discos de jazz em nome próprio sejam um acontecimento raro. Na década de 1980 estudou em Nova Iorque com o grande John Abercrombie; entre 1987/90 dirigiu a Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal e com o seu projeto Idefix editou em 1992 “Idefix live (at Hot Clube de Portugal)” (ao lado de Paulo Curado, Alexandre Manaia, Bárbara Lagido, Yuri Daniel e Bruno Pedroso) – grupo que também tocava no Johnny Guitar – agora redisponibilizado na sua página no Bandcamp. Não muito depois gravou com Mário Laginha o primeiro CD do pianista, “Hoje” (1994).
Desde então tem vindo a focar a sua atenção sobretudo na vertente de compositor para dança (totalmente envolvido no movimento chamado Nova Dança Portuguesa) – colaborando com os coreógrafos Vera Mantero, Paulo Ribeiro, Paula Massano, João Galante, Teresa Prima, Francisco Camacho e Sílvia Real – e cinema – em bandas sonoras para filmes de Rita Nunes, Paulo Abreu e Bruno de Almeida. Alguma desta música tem sido editada em compilações como “Bandas Sonoras para peças de Francisco Camacho e Vera Mantero 1993-97” (2002).
Mas a atividade de Pelágio segue também outros caminhos, como o projeto para a infância Histórias Magnéticas, criado em 2009 e apresentado nacional e internacionalmente, com o qual editou um CD homónimo em 2018 e, no ano seguinte, “Não se deixem enganar! – um conto panfletário de 2019”, motivado pelo avanço, lá fora e cá dentro, de forças políticas obscurantistas e retrógradas. «Para mim, toda a arte é política. Muito mais quando o autor decide torná-la pública. Não há forma de escapar a isso. É sempre uma afirmação, uma tomada de posição e parece-me importante ter consciência disso», começa por referir à jazz.pt. Composições curtas para guitarra, inspiradas por contos, destinadas a serem tocadas com a narração, mas podendo também ser escutadas independentemente.
No domínio do jazz, o seu trabalho tem sido mais esparso. «A minha carreira como músico de jazz não é muito linear», admite. Quase sempre ao lado do seu velho companheiro de aventuras, o contrabaixista (e também insigne bailarino) Mário Franco, em discos liderados por este, como “Our Door” (2013/2014), em trio com André Sousa Machado na bateria, editado pela saudosa Tone of a Pitch, e “Rush” (2017), em quinteto, pela Nischo. A espera finalmente terminou e o guitarrista acaba de lançar “Riff Out”, com selo da Real Pelágio (associação que fundou em 1997 com a coreógrafa e bailarina Sílvia Real), álbum que começou a desvendar ao vivo em Lagos no ano passado.
A estreita ligação que une Pelágio e Franco remonta aos tempos do Hot e foi primeiramente vertida no Art Jazz Trio, depois cimentada em formações lideradas por outros músicos (Laginha, Carlos Martins, Bernardo Sassetti, Andy Sheppard) e reacendida em 2009. Alexandre Frazão, enorme baterista, coerente e flexível como poucos, também comparsa de longa data, é o parceiro ideal para a jornada. «Com o Mário e o Alex já é uma família, partilhamos desde sempre gostos musicais muito próximos e a cumplicidade musical é total. Há uma amizade entre nós muito grande e antiga e para mim, só assim se consegue a carga musical que procuro», sublinha o guitarrista.
O título do disco encerra um conceito: «Gosto da expressão “Riff Out” porque significa tocar de uma forma solta, espontânea, exteriorizar e dar tudo o que se tem.» O desenho da capa, feito pela sua filha Sofia quando tinha nove anos, foi uma inspiração desde o início do processo: «é um monstro e ao mesmo tempo um ser muito divertido, com cores muito vivas e berrantes e com toda a força da imaginação de uma criança. Gosto muito da intensidade que ele emana sendo muito feio.» Já sobre o seu modus operandi criativo admite: «Cada vez me deixo levar mais pela intuição apesar de ter que trabalhar muito para chegar a alguma resultado que me interesse. Sou muito lento e tenho todos os defeitos de um autodidata.» «Guitarristicamente, neste momento sinto que voltei aos meus primórdios: riffs de blues, escalas pentatónicas, bendings. Talvez seja o espírito da minha SG de 1971 – a minha primeira guitarra e, neste momento, a única que uso – a impor-se finalmente», acrescenta.
A música do novo disco alicerça-se assim, como é apanágio do jazz, na empatia e na comunicação, em estratégias de ação-reação geridas em tempo real. e onde o conhecimento mútuo joga um papel decisivo, não se deixando porém enredar em fórmulas ou lugares-comuns. Nas composições de Pelágio desagua tudo o que fez até aqui, no jazz, na composição para dança e para os contos narrados. O ponto de partida para este disco foi o tema “Cerâmica”. Um conjunto de «coincidências mágicas» aconteceram então, uma delas o vídeo que a amiga Paula Azguime lhe enviou e cuja existência desconhecia, de um concerto dos Idefix. O repertório incluía um par de temas que Pelágio tinha apagado completamente da memória e um terceiro que andava a tentar recompor. «Foi uma prenda enviada do passado numa cápsula do tempo. Peguei naquilo e de repente já tinha quatro temas, todos com métricas diferentes, ambientes distintos e perfeitamente atuais, para mim. Diverti-me muito a retrabalhá-los e, nesse processo, os outros foram aparecendo e a coisa foi adquirindo um sentido global», revela. Ao trio-base acrescem dois jovens convidados, o saxofonista Tomás Marques (de imediato sugerido por Franco e Frazão, quando o guitarrista lhes transmitiu que queria um saxofone) e a cantora Filipa Franco, filha do contrabaixista e cujo trabalho acompanha desde o princípio.
Na peça de abertura, que dá título ao disco, a formação diz de caras ao que vem, como a guitarra cristalina em associação apertada e espontânea com os demais instrumentos, sintetizando o que acontece em todo o disco: o saxofone que a dado momento se desamarra num ótimo solo, o contrabaixo seguro de Franco e a bateria sempre imprevisível de Frazão. Segue-se o dinamismo de “Idefix” (Tomás Marques apodou-o de «tema Monk»), com Franco no baixo elétrico, e mais uma vez a articulação estreita entre guitarra e saxofone, em uníssonos a expor o tema-base, com novo solo flamejante de Marques e reexposição final. “Cerâmica” traz um groove arrastado e repetitivo, de powertrio e rock progressivo, filão que Pelágio, Franco e Frazão exploram há algum tempo. Escutamos a guitarra no canal esquerdo, o baixo no canal direito e uma alternância entre linhas comuns e díspares num duelo-diálogo constante.
Pelágio resgatou “Sob” à banda sonora de um peça com o mesmo nome da coreógrafa Vera Mantero, adquirindo aqui um balanço tropical propulsionado pela percussão do Iúri Oliveira. (A peça é dedicada a Gil Mendo, fundador do Fórum Dança, desaparecido este ano.) A forma de tocar do guitarrista remete para as influências de jazz cubano de Wes Montgomery. Segue-se o ritmo anguloso de “Galinha Elétrica” – versão totalmente distinta de um tema que o guitarrista escreveu para o conto “Uma Galinha” da Clarice Lispector. A mais soalheira “Don Quixote 4tet” é homenagem ao livro que levaria consigo para uma ilha deserta. A muito imagética “Mã”, com a sua melodia apaziguadora, radica num excerto da música para o mencionado conto “Não se deixem enganar”, a parte que evoca a mãe que já morreu.
Um jazz-rock colorido emerge de “Snowden”, tema que começou por ser a sonorização que Pelágio fez para uma entrevista ao whistleblower Edward Snowden. Não tendo obtido autorização para usar o áudio da entrevista, ficou apenas com a música, tendo-a transformado em algo completamente diferente. Em “Lamento” – apesar do título, a toada da peça soa ambivalente, a espaços esperançosa –, parte da melodia divide-se entre a guitarra e a voz límpida (e sem palavras) de Filipa Franco, com o contraste a chegar por via do saxofone de Tomás Marques. Para o final, a comovente balada “Nostalgia in NY”, com belos solos de Franco e Marques, peça que mexe com as emoções de quem, algum dia, deixou para trás os sons e as luzes da Big Apple.
Álbum sóbrio e mundividente, “Riff Out” é o ótimo regresso de Sérgio Pelágio aos discos de jazz. Queremo-lo por cá mais vezes.
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Riff Out (Real Pelágio)
Sérgio Pelágio
Sérgio Pelágio (composição e guitarra elétrica); Mário Franco (contrabaixo e baixo elétrico); Alexandre Frazão (bateria); Tomás Marques (saxofones alto e tenor); Iúri Oliveira (percussão); Filipa Franco (voz)