Trevor Dunn's Trio-Convulsant: “Séances” (Pyroclastic)
Pyroclastic
Do caleidoscópico universo musical do contrabaixista/baixista e compositor Trevor Dunn podemos sempre esperar surpresas. Quase duas décadas depois de “Sister Phantom Owl Fish” chega agora o terceiro tomo do trio Convulsant, “Séances”, com a guitarrista Mary Halvorson, o baterista Ches Smith e a participação do quarteto Folie à Quatre. A jazz.pt já o escutou.
Para caracterizar a mente criativa de Trevor Dunn (n. 1968), mais do que em confluência, será porventura adequado falarmos em confronto de estilos, no sentido de um permanente desafio entre elementos provenientes de universos musicais díspares, do rock extremo à música erudita (estudou Bach, Mahler, Berg, Stravinksy, Xenakis), passando pelo jazz de feição mais exploratória e pela música para cinema. Quem conhece a caleidoscópica obra de Dunn, como líder dos seus grupos ou integrando formações com Mr. Bungle ou Fantômas (ambas com Mike Patton) sabe dos insondáveis contornos desta aventura. A sua música continua a equilibrar de modo muito peculiar o rigor e a complexidade da escrita com a urgência mercurial das improvisações.
Com tantas voltas dadas entretanto, talvez a memória do trio Convulsant esteja um tanto difusa, pois foi em 2004 que o contrabaixista/baixista e compositor, acabado de se mudar para Nova Iorque, mergulhou na cena mais vanguardista do jazz da cidade que nunca dorme e pôs de pé este trio com Adam Levy na guitarra e Kenny Wollesen na bateria. Depois da estreia com o obscuro “Debutantes & Centipedes” (1998) – muito inspirado no surrealismo –, Dunn reestruturou o trio e lançou “Sister Phantom Owl Fish” (na Ipecac de Patton, em 2004), já com a guitarrista Mary Halvorson e o baterista e percussionista Ches Smith, então duas vozes já promissoras, mas ainda longe da projeção que viriam a conhecer não muito tempo depois.
Desde o último disco juntos, Halvorson e Smith tornaram-se nomes fundamentais do jazz mais criativo, enquanto que Dunn integrou uma miríade de diferentes projetos (entre as quais uma reunião dos Mr. Bungle em 2020, com Scott Ian dos Anthrax e o ex-Slayer Dave Lombardo), Tomahawk e The Melvins, mas também Endangered Blood, SpermChurch, os Starebaby de Dan Weiss, e os Nels Cline Singers, para além de profícuas colaborações com John Zorn (Nova Quartet, Brian Marsella Trio, Asmodeus), Kris Davis, Jamie Saft, Roswell Rudd, Erik Friedlander e Oliver Steidle, para apenas citar alguns exemplos.
Com chancela da Pyroclastic Records, “Séances” (na aceção de sessão mediúnica de contacto com entidades que alegadamente não pertencem ao mundo dos vivos) é o aguardado terceiro do trio e o seu mais arrojado e inventivo trabalho. O novo disco volta a contar com os predicados de Halvorson e Smith, e expande as possibilidades sónicas com a participação do Folie à Quatre, quarteto de cordas e sopros, constituído por quatro músicos superlativos e líderes por direito próprio: a violinista/violetista Carla Kihlstedt (Tin Hat), o clarinetista baixo Oscar Noriega (Tim Berne’s Snakeoil), a violoncelista Mariel Roberts (Wet Ink Ensemble) e a flautista Anna Webber (Webber/Morris Big Band). A música de “Séances” surgiu apos uma tentativa frustrada, em 2015, de compor música nova para o trio Convulsant e quarteto de cordas. «Assim que percebi que a música do quarteto de cordas não funcionava», recorda Dunn, «resolvi mudar a orquestração para expandir ainda mais a paleta, sendo o trio um formato tão intimista. Lancei um álbum com a minha música de câmara na Tzadik (“Nocturnes”, de 2019], e então tirei o quarteto de cordas do meu sistema.» «O grupo começou a formar-se na minha cabeça, mas levei anos para descobrir o que estava a tentar fazer musicalmente. Então, em algum momento durante a quarentena, finalmente surgiu», acrescenta.
“Séances” busca inspiração nos Convulsionários (ou Convulsivos) de Saint-Médard, um grupo de peregrinos religiosos franceses do século XVIII, considerados hereges por outros cristãos, e que exibiram convulsões e mais tarde formaram uma seita religiosa e um movimento político. Esta prática teve origem no túmulo de François de Paris, um diácono jansenista asceta que foi sepultado no cemitério da paróquia de Saint-Médard, na capital francesa, local que se tornou centro de alegados “fenómenos”, como coprofagia, vómitos espontâneos de leite e levitação.
O que começou como mera histeria religiosa com paroxismos e curas mágicas acabou por se descontrolar. Quase orgiásticos segundo alguns relatos – e há muitos, mesmo de céticos –, os milagres e as demonstrações públicas de fervor foram banidos pela lei. A igreja de Saint-Médard (ainda de pé) foi encerrada em 1732 e os Convulsionários remeteram-se a residências particulares para continuarem as suas práticas espirituais. Estas sessões incluíam aquilo a que chamaram “secours meurtriers”, expressão traduzida por alguns como “alívios assassinos”, “ajuda fatal” ou “salvadores mortais”. A maioria dos Convulsionários eram mulheres que atacaram os princípios da hierarquia, privilégios e patriarcado em que a igreja do Antigo Regime assentava. Como refere a historiadora Lindsay Wilson no livro “Women & Medicine in the French Enlightenment” (John Hopkins University Press, 1993), citado por Dunn em notas de apresentação do álbum, «certamente os Convulsionários desviaram-se dramaticamente dos modelos tradicionais de religiosidade para as mulheres, que buscavam a aniquilação do “eu” por meio de obediência escrupulosa, constrangimento e silêncio.»
A abertura, com “Secours Meurtriers”, é serenamente introduzida pela flauta de Anna Webber, adequado preâmbulo para o que se irá seguir, com as “séances” a serem representadas pelos diferentes solistas sobre um ostinato. Junta-se a guitarra (em crescendo energético), o violino lancinante (foram dadas instruções a Kihlstedt para «tocar como se estivesse a comer vidro») e os notáveis polirritmos de Smith. A dado momento, emerge uma dança entre flauta e violino, que abre alas para uma intervenção de Dunn até ao clímax. “Saint-Médard” é meticulosamente construída a partir dos jogos que se estabelecem entre as diferentes peças deste xadrez instrumental. A melodia é desenvolvida primeiro por guitarra e violino – com um remoto travo country/blues – e depois por guitarra e flauta (destaque para Halvorson, com um papel estruturado, mas instável), e a secção rítmica sempre a ferver em fogo alto.
“Restore All Things” (peça sobrevivente do material escrito em 2015) vinca mais ainda a natureza camerística desta música, amiúde enigmática, em particular a articulação judiciosa entre a guitarra como agente livre e a flauta (belíssimo solo de Webber). “1733” – menção a uma fase tumultuosa para os Convulsionários – é uma peça densa e claustrofóbica, que contém a única improvisação coletiva em septeto. (Para os adeptos da numerologia, notar que a peça contém uma alusão ao nome completo do rei Luís XV, considerado o anticristo, que transformado em numeração romana totaliza 666, o número da besta. Um pormenor a que Dunn, metaleiro dos anos oitenta, não resistiu.)
De atmosfera mais meditativa, “The Asylum’s Guilt” é marcada por uma primeira passagem de clarinete baixo de Noriega e depois pelo violoncelo de Roberts. Violino e depois a flauta lançam o drive esdrúxulo de “Escathology”, pontuado pelos espasmos de guitarra e pelas espirais propostas pelo clarinetista. Smith urde a sua complexa tapeçaria rítmica acolitado pelo contrabaixo sólido do líder. “Thaumaturge” abre com o contrabaixo de Dunn e evolui numa toada etérea que conduz à belíssima melodia que encerra o álbum.
Sendo uma narrativa, embora disjunta, “Séances” é um álbum complexo e incategorizável que exige do ouvinte a sua total atenção para que, paulatinamente, se faça luz.
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Séances (Pyroclastic)
Trevor Dunn's Trio-Convulsant
Trevor Duun (baixo elétrico, composições); Mary Halvorson (guitarra); Ches Smith (bateria e percussão) + Folie à Quatre: Carla Kihlstedt (violino e viola); Oscar Noriega (clarinete baixo); Mariel Roberts (violoncelo); Anna Webber (flauta)