J.A. Deane / Jason Kao Hwang Dino Duo: “Uncharted Faith” (Tone Science Music)

J.A. Deane / Jason Kao Hwang Dino Duo: “Uncharted Faith” (Tone Science Music)

Tone Science Music

António Branco

“Uncharted Faith” é a derradeira colaboração entre o manipulador de eletrónicas J. A. Deane – desaparecido em 2021, sem ter acompanhado a fase final do processo – e o violinista, compositor e improvisador Jason Kao Hwang, músico que com os seus múltiplos projetos continua a surpreender. A jazz.pt já o escutou.

O violinista, compositor e improvisador norte-americano Jason Kao Hwang (n. 1957) – filho de pais chineses de Hunan que emigraram para os Estados Unidos no final da Segunda Guerra Mundial – tem andando discograficamente atarefado nos últimos anos (período pandémico incluído). Em 2018 editou “Blood”, o segundo tomo do projeto Burning Bridges; no ano seguinte ofereceu-nos, em duo com o pianista e vibrafonista Karl Berger, o notável “Conjure”; em 2020, lançou o registo de estreia do Human Rites Trio, com o contrabaixista Ken Filiano e o baterista Andrew Drury.

Há muito que Hwang se afirmou como uma das mais interessantes vozes do cadinho criativo que continua a ser o Lower East Side nova-iorquino. Desenvolvendo um trabalho multímodo, quer em nome próprio quer em colaboração com nomes cimeiros do jazz e músicas improvisadas conexas do nosso tempo (Braxton, Threadgill, Parker), tem logrado explorar um vasto leque de possibilidades sónicas que emergem da articulação entre elementos do jazz menos cerceado, da música erudita contemporânea e da milenar cultura chinesa. A sua robusta formação clássica permite-lhe jogar com igual proficiência em diversos tabuleiros, da ópera (“The Floating Box: A Story in Chinatown” é de audição deveras recomendada) à livre improvisação, sem nunca se deixar engavetar estilisticamente.

Acaba de lançar “Uncharted Faith”, disco mais uma vez em duo, desta feita com o manipulador de eletrónicas J. A. Deane (1950-2021), aka Dino para os amigos mais próximos, que começou a sua carreira como trombonista nos L.A. Horns - que chegaram a fazer digressões com Tina Turner nos anos 1970 -, tocou com John Zorn (participou nas gravações de "Cobra" em 1985 e 1986) e Jon Hassell, entre outros. Explorador incansável, Deane foi um criador de mundos eletrónicos intrigantes, que encontram no violino elétrico mutante de Hwang uma valiosa contraparte. Nesta colaboração desenvolvida em plena pandemia, Deane e Hwang trocaram faixas e ideias, respondendo um ao outro com uma sinergia que radica nos dias em que improvisavam juntos em várias formações lideradas por Butch Morris em meados da década de 1980. Tragicamente, Deane faleceu em 2021 numa altura em que o violinista terminava de gravar as suas partes, não tendo estado presente na fase final do processo. “Uncharted Faith” é derradeira viagem sonora da dupla.

Depois do desaparecimento da companheira, Colleen Mulvihill, em 2019, Deane mudou-se de Denver para uma pequena casa de campo em Cortez, Colorado. Aí, acompanhado pelos seus dois cães, terminou de escrever o livro “Becoming Music, Conduction & Improvisation as Forms of QiGong”, que enviou a Hwang em dezembro de 2020. O violinista retorquiu enviando os seus CD, incluindo o já mencionado “Conjure”, dueto com Karl Berger, que ele apreciou especialmente. Apesar dos constrangimentos colocados pela situação pandémica, ambos concordaram em colaborar numa gravação em duo. Em janeiro de 2021, Hwang esteve atento à apresentação de Deane via plataforma Zoom para o Red Room em Baltimore. «As suas sinfonias fantasmagóricas, vívidas e luxuriantes com sons únicos, eram incrivelmente belas», disse o violinista a propósito. Trocaram mais ideias e o projeto ganhou renovada propulsão. «Dino propôs que eu lhe enviasse improvisações de cinco a 10 minutos de violino acústico solo. Ele trabalhava com isso, então devolvia-me as faixas para overdub.» Todas as partes de ambos os músicos são completamente improvisadas.

Em maio desse ano, Deane mencionou, de modo críptico, problemas de saúde a Hwang. Entre outras considerações, escreveu: «Cada faixa foi criada numa estação de trabalho de áudio digital ao vivo (os sons originais foram alterados e modificados intensamente) e depois executados e gravados em tempo real. Sou obcecado em explorar, explodir e exaltar o DNA do som. Não há dúvida de que muitas dessas peças são harmonicamente densas. Encorajo-o a abraçar e a multiplicar essa densidade com vários overdubs, se optar por seguir esse caminho.» O desafio estava lançado. Dois meses depois, Hwang completou o processo no violino elétrico, solicitando a Deane que lhe enviasse mais uma faixa, que, surpreendentemente, já estava pronta.

As palavras de Deane são premonitórias: «Tenho estado a evitar isto porque não queria prejudicar a sua contribuição para o que provavelmente será o projeto final da minha vida.» Tinha cancro na garganta num estado avançado e decidiu não receber tratamento. A resposta de Hwang diz tudo: «Sei que a sua jornada será bela e maravilhosa, assim como a sua música.» Em meados de julho, o violinista começou a enviar as peças já misturadas, que Deane ainda comentou, dando sugestões de melhoria e pedindo para que Hwang lhes desse títulos e completasse a produção. Deane partiu a 23 desse mês, aos 71 anos.

A música que engendrou remotamente a meias com Hwang desafia catalogações. Em “Parallel Universe” as eletrónicas encontram aliado no forte processamento do violino, em sucessivas vagas, criando uma ambiência densa e enigmática, que de certa forma está presente na peça seguinte, “Singularity”, em que o violino de Hwang emerge com maior clareza soando a meio caminho entre um sintetizador e uma guitarra elétrica. Em “Crossing the Horizon” ficam mais claros os dedilhados de Hwang, com o que parecem ser ecos da música do extremo oriente a despontarem aqui e ali, embora rapidamente dissolvidos na inexorável nuvem elétrica.

Em “Shamans of Light” temos como que um órgão de igreja sobrecarregado a que se juntam os espasmos elétricos de um violino alienígena. Mais rarefeita, e a espaços onírica, a é atmosfera de “Speaking in Tongues”, com várias camadas de violino a entrecruzarem-se. Os pings iniciais do violino na extensa peça-título, centro nevrálgico do álbum, desencadearem sinapses que me levaram a paisagem sónicas de distinta configuração, planantes ou agrestes, sempre profundamente imagéticas. A dado momento, o violino surge mais claro (ainda que processado), desenhando uma melodia longínqua, assente numa base eletrónica incandescente que se extingue lentamente.

“Uncharted Faith” é uma obra caleidoscópica e cerebral, que reclama vagar e espírito aberto para se deixar desvendar na plenitude.



  • Uncharted Faith

    Uncharted Faith (Tone Science Music)

    J.A. Deane /Jason Kao Hwang Dino Duo

    J. A. Deane (eletrónicas); Jason Kao Hwang (violino elétrico, efeitos)

Agenda

02 Abril

Zé Eduardo Trio

Cantaloupe Café - Olhão

02 Abril

André Matos

Penha sco - Lisboa

06 Abril

Marcelo dos Reis "Flora"

Teatro Municipal de Vila Real / Café Concerto Maus Hábitos - Vila Real

07 Abril

Jam Session hosted by Clara Lacerda

Espaço Porta-Jazz - Porto

08 Abril

Greg Burk Trio

Espaço Porta-Jazz - Porto

08 Abril

Carlos “Zíngaro”, Ulrich Mitzlaff, João Pedro Viegas e Alvaro Rosso

ADAO - Barreiro

12 Abril

Pedro Melo Alves e Violeta Garcia

ZDB - Lisboa

13 Abril

Tabula Sonorum

SMUP - Parede

14 Abril

Apresentação do workshop de Canto Jazz

Teatro Narciso Ferreira - Riba de Ave

14 Abril

Olie Brice e Luís Vicente

Penha sco - Lisboa

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