Marmota: “Toca” (Robalo)
Robalo
Gonçalo Marques e André Matos são comparsas musicais de longa data e figuras centrais do jazz nacional do século XXI. Depois de Matos ter surgido como convidado no disco “Tundra”, do duo ¡Golpe!, trompetista e guitarrista apresentam agora “Toca”, tomo de estreia dos Marmota, na Robalo. A jazz.pt já o escutou.
Muitas aventuras conjuntas depois, o trompetista Gonçalo Marques (n. 1972) e o guitarrista André Matos (n. 1981), nomes incontornáveis do jazz nacional das últimas duas décadas, apresentam “Toca”, o registo de estreia do duo Marmota, com selo da Robalo. Desde logo, um título com significativa dupla aceção: “toca” no sentido de refúgio/abrigo e “toca” (vertível até num exclamativo “toca!” ) enquanto forma do verbo tocar. «Há qualquer coisas de solitário na música, por exemplo no estudo de um instrumento ou na composição, muitas vezes sentimo-nos numa espécie de “refúgio”. Há também qualquer coisa de libertador na improvisação em conjunto, por exemplo quando alguém nos interpela, muitas vezes sem verbalizar: “toca!”. E há que não esquecer a polaridade básica entre o som e o silencio: por cada “toca!” há um “não toques!», explica Gonçalo Marques à jazz.pt.
Marques estreou-se discograficamente como líder com “Da Vida e da Morte dos Animais” (na saudosa Tone of a Pitch), em robusto trio com o contrabaixista Demian Cabaud e o baterista Bruno Pedroso, a que se juntou o saxofonista norte-americano Bill McHenry como convidado especial. Seguiram-se “Cabeça de Nuvem só tem Coração” (2015), “Canção do Homem Simples” (2017) e “Linhas” (2019). Integrou o quinteto Baltazar e o grupo de Jeff Williams, foi o diretor musical do Septeto do Hot Clube em 2013 e 2014. Tem colaborado com diversas formações, como o Lisbon Underground Music Ensemble, de Marco Barroso, a Big Band do Hot Clube de Portugal, a Reunion Big Jazz Band e o sexteto Living Thing.
Os últimos anos também têm sido particularmente frenéticos para o guitarrista André Matos. Em 2021 ofereceu-nos “Casa” – o derradeiro tomo de uma tetralogia a solo –, o monumental “On the Shortness of Life”, conjunto de duos remotos em tempos pandémicos, “Estelar”, o EP "Orbit", e, já no final do ano, os álbuns gémeos “Roam Free” e “Ritual”. Já em 2022 tivemos “Limbo”, de novo a solo, e “Directo Ao Mar”, em trio com o baixista João Hasselberg e o baterista João Pereira. Matos partilhou os créditos do notabilíssimo “Tundra”, do duo ¡Golpe!, que Marques partilha com o baterista João Lopes Pereira (recenseado na jazz.pt aqui).
A relação musical e a admiração mútua vai para duas décadas. «Sempre houve uma troca intensa de ideias. O Gonçalo é um grande pensador e houve sempre uma procura dos sons que estão por aí, temos um diálogo que se mantém vivo desde os primeiros tempos que tocámos. Talvez em Boston», diz André Matos. Já Marques lembra que a associação musical entre ambos começou por germinar em projetos de outros músicos ou em grupos de maior dimensão em que um deles liderava. Mais do que apontar o instante concreto onde tudo começou, o trompetista prefere salientar ao que vem: «O meu propósito com o duo é duplo: tocar com um músico que gosto muito e com quem sinto muitas afinidades musicais e, se calhar não devia dizer isto, ter uma desculpa para passar mais tempo com um amigo. Sempre conversámos muito, mas vivemos em cidades separadas por um oceano, este é também um modo de mantermos as nossas conversas em aberto.»
“Toca” é o resultado de um concerto de certa forma impromptu que foi gravado ao vivo na Penha Sco, cooperativa e sala de espetáculos na Penha de França, Lisboa. Marques e Matos já se tinham apresentado em algumas ocasiões no formato de duo antes mesmo de serem assumidamente os Marmota. Nessa noite decidiram soltar amarras e improvisar livremente, dando continuidade lógica a uma dimensão cara aos dois músicos. «“Toca” é um primeiro passo. Estamos a explorar terreno que é ao mesmo tempo desconhecido e familiar», sublinha Gonçalo Marques. «Interessam-nos este tipo de contradições que resultam de improvisarmos livremente sem rede, ou melhor com a rede que nos dá aquilo que somos e o conhecimento musical que temos um do outro, mas uma rede onde de vez em quando, nos deixamos propositadamente enrolar, de modo a surpreendermo-nos mutuamente», acrescenta o trompetista. No público, a assistir à apresentação, estava o saxofonista José Soares, logo convidado para se juntar aos dois em palco. Mal sabiam que algo estava a nascer ali.
O que escutamos nesta gravação é totalmente improvisada, não havendo por isso qualquer pré-preparação para além das experiências individual e coletiva até esse momento. Facto não despiciendo é a acústica da própria sala, propícia a intimidades sónicas. Os dois músicos entregam-se a intensos jogos de interação em termos de texturas e timbres, provocando e respondendo um ao outro de modo consequente. Momentos em que parece que a música permanece estática alternam com outros onde nos deparamos com disrupções repentinas, não necessariamente fundadas no que aconteceu momentos antes. A música do duo funcionaria bem como banda sonora de um filme imaginário: ambos são fortemente atraídos pela fotografia e pela pintura, não esquecendo o cinema, o teatro e a dança.
Como sublinha o guitarrista, «cada peça é uma mini-história que funcionaria por si própria, mas no todo, sendo as três muito distintas entre si, cada peça é um capítulo da grande história.» “Escavação” (a mais extensa, com 18+ minutos de duração) começa com os dedilhados esdrúxulos propostos por Matos, numa elucubração textural erguida em várias camadas. O trompete surge límpido quatro minutos volvidos, de início com recurso a notas curtas, entabulando um diálogo que evolui paulatinamente, adquirindo contornos distintos. Numa simetria arquitetural quase perfeita, Marques sai de cena a quatro minutos do final, deixando a guitarra de novo entregue às suas explorações. O final liga de algum modo com a peça seguinte, “Hibernação”, que nos envolve numa atmosfera enigmática, espesso manto eletrónico do qual emerge o trompete, luz a despontar das trevas, melodia primordial. A dado momento, a guitarra soa como uma espécie de violoncelo alienígena, enquanto o trompete tergiversa na sua linha melódica. “O Dia da Marmota” inicia-se com as notas tranquilas de trompete, a que se alia o saxofone de José Soares, numa dança feita de aproximações e afastamentos, pontuada pela guitarra multidimensional de Matos. Tudo se torna então mais difuso e espectral, com trompete e saxofone a desenharem linhas ténues.
“Toca” é um belo disco, onde Gonçalo Marques e André Matos assumem novos riscos e dão conjuntamente um resoluto passo em frente nos respetivos percursos.
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Toca (Robalo)
Marmota
Gonçalo Marques (trompete); André Matos (guitarra) + José Soares (saxofone alto)