Oxbow & Peter Brötzmann: “An Eternal Reminder of Not Today / Live at Moers” (Trost)
Trost
“An Eternal Reminder of Not Today / Live at Moers” documenta o encontro ao vivo entre o rock explosivo tingido de blues e improvisação dos californianos Oxbow e as octanas do veterano saxofonista germânico Peter Brötzmann no festival de Moers, Alemanha, em 2018. Tem chancela da austríaca Trost e a jazz.pt já o escutou.
A notícia de uma colaboração entre os Oxbow e Peter Brötzmann é motivo para que os sentidos fiquem de imediato em prontidão. Os Oxbow são um grupo norte-americano formado em São Francisco em 1988 que nos tem oferecido uma incategorizável mistura de rock musculado, jazz de vanguarda, música concreta, spoken word e blues, em proporções distintas, que conhecemos de discos como “King of the Jews” (1991), “Let Me Be a Woman” (1995), “An Evil Heat” (2002) ou “The Narcotic Story”(2007). Veículo principal dessa exteriorização energética é o carismático vocalista Eugene S. Robinson, de verve intensa e hipnótica. Brötzmann lança chamas desde a década de 1960 e é uma das figuras maiores – e historicamente mais inconformadas – do jazz europeu das últimas seis-6-seis décadas, com um percurso absolutamente excecional que não deixa pedra sobre pedra.
O encontro entre grupos de rock e saxofonistas de jazz não é propriamente inédito, nem de hoje. Lembremo-nos de exemplos tão variados como Sonny Rollins com os Rolling Stones por alturas de “Tattoo You”; Mette Rasmussen – saxofonista dinamarquesa baseada na Noruega muito influenciada por Brötzmann, diga-se – com Godspeed You! Black Emperor; Wadada Leo Smith com Deerhoof; ou, entre nós, Pop Dell´Arte com Rodrigo Amado, Mão Morta com Pedro Sousa e o mesmíssimo Brötzmann com os Black Bombaim.
“An Eternal Reminder of Not Today / Live at Moers”, com selo da Trost, documenta o encontro ao vivo entre estes titãs no festival de Moers (cidade localizada na margem ocidental do Reno, perto de Duisburgo), na Alemanha, no dia 20 de maio de 2018 – a pedido pessoal de Tim Isfort, diretor do festival – ainda nem sonhávamos que o mundo iria virar de pernas para o ar em menos de dois anos. Logo aos primeiros sons fica claro que o encontro funcionou, com o saxofonista a injetar lava nos interstícios do já de si potente som do grupo. Essa afinidade muito especial começa, desde logo, na associação entre a crueza da voz de Robinson e o tom do saxofone tenor de Brötzmann.
É o guitarrista Niko Wenner que em entrevista à revista online alemã Kaput dá conta da dinâmica que se estabeleceu entre grupo e saxofonista: «Nós, como quatro tipos, tocamos juntos há mais de 30 anos e tornámo-nos muito confortáveis com o que fazemos; o Peter trouxe algum desconforto quanto aos nossos papéis. Eu não tenho tocado “fora”... Isso é ótimo. Isso empurra-me.» E o saxofonista complementa, adicionando a variável política à equação: «Assim que se sobe ao palco, é político. Num sentido muito amplo. É uma declaração. E é uma declaração política também.»
A função abre em alta rotação com “Angel”, tema eletricamente carregado pela guitarra de Wenner, a que se juntam a voz assombrada e o saxofone de Brötzmann, com um pendor bluesy que depois de transfigura na livre improvisação, ganhando intensidade, ainda que espreitem fragmentos melódicos. Ficam desde logo patentes os traços fundamentais desta associação: a ligação simbiótica entre voz e saxofone, com os outros instrumentos (mormente a guitarra) a acrescentarem camadas.
Em “Cat and Mouse” os níveis energéticos crescem sobremaneira, com riffs densos e um Brötzmann explosivo, suportados por uma secção rítmica em permanente efervescência, com tudo a quietar-se na parte final. “Skin”, em registo spoken-word e de novo com os vuímetros no vermelho, e “Over”, momento maior, com o seu balanço só aparentemente mais respirado, mostram Brötzmann no olho do furação, neste último caso acolitado pelos efeitos eletrónicos, numa tensão permanente. “A Gentleman’s Gentleman” interpela-nos com uma diabólica pulsação rock’n’roll, de audição viciante. “Host” mostra um trabalho coletivo mais aturado. “The Finished Line” é mais arrastada, com guitarra e saxofone a urdirem aqui aliança próxima. A destoar de toda a restante música, “The Valley”, peça que encerra o álbum, é mais textural e abstrata, com voz sussurrada e frases curtas do saxofone, que evoluem para terrenos dos blues, com a voz de Robinson novamente em articulação virtuosa com o sopro primordial de Brötzmann.
Não aconselhado a cardíacos nem a puristas de qualquer dogma, “An Eternal Reminder of Not Today / Live at Moers” é um sopro de energia e vitalidade, que certamente agradará tanto aos seguidores do grupo norte-americano quanto aos devotos do veterano mestre alemão. E a todos quantos busquem na música uma fonte inesgotável de surperesas.
(Peter Brötzmann estará em Coimbra para dois concertos integrados no Jazz ao Centro – Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra, a solo no dia 14 de outubro e no dia seguinte com Heather Leigh).
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An Eternal Reminder of Not Today: Live at Moers (Trost)
Oxbow & Peter Brötzmann
Oxbow: Eugene S. Robinson (voz); Niko Wenner (guitarra, piano); Dan Adams (baixo); e Greg Davis (bateria); Peter Brötzmann (saxofone tenor)