Apophenia: “Prötzeler” (Robalo)
Robalo
Os ouvintes mais atentos já perceberam que o jazz nacional atravessa um período de grande fulgor criativo, com o emergir de uma nova geração de excelentes músicos. Um dos exemplos mais recentes é o quarteto Apophenia, formado por João Gato no saxofone alto, Bernardo Tinoco nos saxofones alto e soprano, Zé Almeida no contrabaixo e Samuel Dias na bateria. A formação acaba de editar, pela mão da Robalo, o seu notável registo inaugural. A jazz.pt já o escutou.
Uma sempre saudável consulta ao dicionário esclarece que apofenia é a propensão para estabelecer conexões entre objetos ou ideias que aparentemente não têm relação entre si [do termo alemão “apophänie”, cunhado pelo neurologista alemão Klaus Conrad (1905-1961)]. Mas Apophenia é também um quarteto português, fundado em 2022 em Lisboa, formado por jovens mas já rodados músicos – João Gato no saxofone alto, Bernardo Tinoco nos saxofones alto e soprano, Zé Almeida no contrabaixo e Samuel Dias na bateria.
«Cada um de nós ouve e pensa na música de forma bastante diferente, daí a procura entre um lugar-comum, uma ligação entre nós (quatro emissores de dados e informação)», começa por dizer João Gato à jazz.pt. Os propósitos da formação, segundo os próprios, passam por «encontrar um terreno comum entre as vertentes rítmicas do jazz contemporâneo, a abordagem harmónica de um quarteto sem instrumento harmónico e a liberdade de improvisação total.»
Os quatro músicos conheceram-se durante a sua passagem pela Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal, embora algumas das ligações venham mais de trás («conheço o Bernardo desde os 12, jogávamos à bola», acrescenta Gato). Os laços apertaram-se durante a licenciatura na Escola Superior de Música de Lisboa, onde tocaram algumas vezes e logo perceberam que funcionavam bem juntos, que se complementavam. «Depois foi só preciso escrever música para que pudéssemos trabalhar no nosso som conjunto.» Da pequena digressão que fizeram em Berlim em abril deste ano resultou o nome do disco inaugural da formação, acabado de editar pela Robalo: a paragem de tram mais próxima do local onde pernoitaram chama-se Prötzeler. E assim ficou.
Se os saxofonismos de Gato e Tinoco são claramente distintos, sobretudo no plano tímbrico, a sua união puxa a música para frente, sublinhado ou contrastando passagens. O contrabaixista Zé Almeida e o baterista Samuel Dias formam uma secção rítmica coesa e que nunca se acantona ao papel de suporte, antes constituindo-se como essencial para o som global do quarteto. Um som direto e pleno de energia, reflexo da natureza democrática e fresca da formação, com uma crueza – talvez uma pré-maturidade – que só os beneficia.
A juventude também está patente nos títulos das peças: «Somos provocadores uns com os outros e isso reflete-se nos nomes (e na música)», sublinha João Gato. Todos os temas têm um substrato preparado, mesmo os que depois adquirem contornos de maior liberdade. «O nosso método de trabalho é baseado na exploração de possibilidades de direção das improvisações e composições, basicamente pegar no embrião que é a composição escrita e aplicar lhe mil mutações em conjunto.» O saxofonista não se esquiva a radiografar a relojoaria do processo: «O grau de rigidez das bases varia, mas o objetivo é sempre partirmos daí na maneira como moldamos a peça na sua totalidade: a junção da improvisação e composição é então o objetivo principal.» E assim já antecipam uma linha de desenvolvimento futuro: o trabalho e pesquisa em conjunto irá incidirá precisamente no esbatimento dessas barreiras, apostando na coesão e, simultaneamente, na imprevisibilidade. «Essencialmente é atirar o guião pela janela, agora que já tocámos a música vezes suficientes para saber como soa.»
A peça inaugural, “Melody Fragments” é a única que não é original, tendo saído da pena de Peter Evans – uma das grandes influências da formação (a par de Eric Dolphy). A escolha radicou no facto de João Gato ter tocado o tema com o próprio Evans, num workshop. Os quatro músicos pensaram depois nos fragmentos que queriam utilizar e na forma como arranjariam essas frases melódicas. A peça é introduzida pelo contrabaixo em cuja pujança radica tudo o que acontece, o entrelaçar apertado dos dois saxofones alto (em uníssono ou despique), o fulgor da bateria. «Então bate palmas, meu!», escuta-se alguém clamar, em fundo, no final. A peça que se segue no alinhamento, “Não tens de pagar a renda sozinho”, é mais estruturada, em registo quase-camerístico, com os saxofones a pairarem até ao solo de contrabaixo a que apenas a bateria oferece subtil respaldo. Da relaxada “Pseudo experiência incrivelmente profunda” avulta o diálogo entre o saxofone alto de Gato e o saxofone soprano de Tinoco, com a secção rítmica numa ebulição tranquila. Em contraste surge a vertiginosa “ED”, com os dois saxofones em saudável compita, ouvindo e reagindo. Um apontamento solo da bateria lança o estertor da peça. “Resset” é uma vinheta serena só com saxofone e contrabaixo.
Gravada ao vivo em Berlim, “Frenesim do ponto de vista de um gnomo” é tour-de-force para o baterista, cuja longa introdução lança o contrabaixo e logo os dois saxofones numa flamejante jornada, até que, a três minutos e meio do fim, tudo abranda, mas por pouco tempo: a secção derradeira retoma a rápida pulsação, até ao uníssono final.
“Metamorfose” é um microtema, apenas uma frase escrita, que começou como um exercício que Gato escreveu em contexto académico para Gonçalo Marques («um professor incrível que tive na ESML e com o qual todas as pessoas deviam conviver, faria bem ao mundo»). Tudo assenta aí: a improvisação parte dessa frase, qual rampa de lançamento para uma abordagem mais baseada na melodia («podemos esticar a corda, mas um dos princípios que estabelecemos foi o de ser sempre reconhecível que partimos e voltamos a essa melodia»). Diálogo cordato entre os saxofones de Gato e Tinoco, com a secção rítmica sempre atenta e a acrescentar elementos.
Segue-se a atmosfera enigmática de “Compilação de ideias de Varèse”, eivada de rigorosa solenidade, sobretudo cortesia de Almeida, que recorre ao arco para adicionar gravitas. “Statement #1”, paradoxalmente a fechar, é outro tema escrito na altura em que João Gato estudou com Peter Evans e onde a influência deste ressalta clara. Dividida em duas partes, o quarteto parece separado no plano da condução melódica. A peça começa rápida e assertiva, com um jogo rítmico intenso entre os quatro músicos, partindo de um padrão para logo o fragmentar e mudar notas; a dado momento, uma intervenção solitária do contrabaixista dá o mote para a peça tergiversar para domínios requintados.
Eis nova prova, se necessária fosse, da fase de enorme vitalidade que o jazz nacional atravessa, pela mão de quatro músicos pertencentes a uma nova geração com muito por dizer e que persevera em não se deixa policiar. O nome da formação poderá aludir ao processo de associar ideias que aparentemente não estão relacionadas, mas, como diria o poeta Guerra Carneiro, «isto anda tudo ligado». O quarteto Apophenia é uma das grandes surpresas do ano. Todos os ouvidos neles.
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Prötzeler (Robalo)
Apophenia
João Gato (saxofone alto); Bernardo Tinoco (saxofones alto e soprano); Zé Almeida (contrabaixo); Samuel Dias (bateria)