Simantra GP & Luís Figueiredo: "Mil Pedaços" (Roda Music)
Roda Music
Perscrutar o grande baú da música tradicional e popular portuguesa sob um olhar erudito ou jazzístico não é tarefa inédita, mas é sempre um empreendimento desafiante e que comporta riscos. O Simantra Grupo de Percussão convidou o pianista e compositor Luís Figueiredo para escolher e arranjar temas desse cancioneiro e o resultado é o notável "Mil Pedaços", álbum que acaba de ver a luz do dia pela mão da Roda Music. A jazz.pt já o escutou.
Em texto publicado na contracapa do disco “Seis Cantigas de Amigo” (Arquivos Sonoros Portugueses, 1969), de José Mário Branco, o etnomusicólogo e arquivista corso Michel Giacometti escreveu: «Entendemos por música popular toda a música que, não sendo erudita nem folclórica, se identifica com os problemas da coletividade (para esclarecer, contestar ou aderir), ou procura reencontrar formas que pertencem à tradição nacional, sem prejuízo, num ou outro caso, duma qualidade artística que é a garantia mesma da sua popularização.»
Trabalhar criativamente este riquíssimo manancial nunca é tarefa fácil ou isenta de riscos. Tal como autenticidade não se confunde com mimetismo, todas as possibilidades estão em aberto. O convite dirigido ao pianista, compositor e arranjador Luís Figueiredo partiu do Simantra Grupo de Percussão e visava trabalhar repertório tradicional e popular português sob um prisma jazzístico, sobretudo do ponto de vista harmónico, insuflando-lhe nova vida. «Já há algum tempo que pretendíamos explorar o imaginário da música tradicional portuguesa por duas razões: primeira, não existia repertório deste cariz para esta formação e, segundo, porque sentíamos falta de um repertório que nos identificasse nacionalmente, sobretudo nos festivais internacionais de percussão em que temos tocado ao longo dos últimos anos», explica o grupo a uma só voz.
O resultado é “Mil Pedaços”, agora lançado pela Roda Music, editora fundada em 2019 e sediada em Coimbra, cujo catálogo – já com uma dúzia de títulos, reclama atenção e reconhecimento. «A alusão a mil pedaços pretende remeter o ouvinte para a diversidade instrumental própria de um grupo de percussão. E embora existam “muitos pedaços”, existe um fio condutor traçado pela constância do piano, pela forma como foram encadeados os vários temas e foram aparecendo os vários ambientes sonoros», sublinha o grupo de percussão. Esse fio condutor fica igualmente expresso pelo facto dos alinhamentos do disco e do concerto serem os mesmos.
Luís Figueiredo tem vindo a assumir-se como uma força criativa central no panorama do jazz nacional, em diferente contextos e configurações instrumentais, do solo (“À Deriva”, de 2021), em duo – por exemplo, o com João Mortágua, “Kintsugi”, também de 2021 – ou com a Orquestra Jazz de Matosinhos (“Se Por Acaso”, 2022), para citar apenas os mais recentes. O Simantra GP é um grupo de percussão português fundado em Aveiro em 2009, que assume como objetivo a «interação das diferentes expressões artísticas com a música contemporânea aliadas à originalidade estética ao alcance de todos.» É formado pelos percussionistas Andrés Pérez, Leandro Teixeira, Luiz Ferreira e Ricardo Monteiro e tem entre as suas referências compositores como John Cage e Steve Reich. Cruza vários estilos musicais e áreas artísticas, como a dança e as artes visuais.
“Mil Pedaços” abarca repertório escolhido inicialmente por Figueiredo e proposto ao Simantra, proveniente de várias regiões do país, de Trás-os-Montes ao Algarve, passando pelas Beiras e pelo Alentejo, entre canções de embalar, romances e canções de trabalho, entre outras formas. Juntam-se-lhes peças influenciadas por este universo, saídas da pena de cantautores como José Afonso, Sérgio Godinho ou Fausto Bordalo Dias. A palavra a Luís Figueiredo: «Quando parti para a seleção do repertório, houve vários critérios em jogo, para começar o das preferências pessoais, naturalmente. Mas houve também uma preocupação constante de trabalhar sobre música cuja matéria-prima me permitisse dizer algo de interessante nesta nova leitura, que resulta essencialmente do cruzamento entre o jazz (ou, pelo menos, o meu jazz) e um certo idioma da percussão erudita, com as suas múltiplas possibilidades.»
A tarefa que Luís Figueiredo e o Simantra GP agora empreendem é sempre um desafio complexo para quem a toma de modo sério e apostado em usar tais elementos basilares para criar algo verdadeiramente novo. Em notas de apresentação do álbum sublinham que tudo passa por conseguir «comunicar sonicamente as referências coletivas que temos da música tradicional e popular portuguesa, e ao mesmo tempo construir peças com uma linguagem idiomática da percussão erudita.» Para esse trabalho combinam material escrito com improvisação (as partes improvisadas foram entregues ao piano e à melódica), utilizando técnicas empregadas habitualmente na escrita para formações alargadas e recursos tímbricos que são o resultado da exploração das vastas possibilidades postas à disposição pelas percussões. No plano harmónico avulta uma abordagem que radica no jazz.
“Estando Eu à Minha Porta”, canção de trabalho transmontana, funciona muito bem como introdução ao disco, explorando os vibrafones (em tremolo e com arco), até que o piano de Figueiredo pega na bela melodia. “Farrapeira” – dança típica da Beira Baixa que também é bailada no Ribatejo –, é mais enérgica, assente nos uníssonos a explanar a melodia-base e nas paradas e respostas entre piano e percussões. Uma alegria esfusiante domina a leitura da canção de Sérgio Godinho (originalmente no álbum “Salão de Festas”, de 1984) que empresta o seu título ao disco. O arranjo original foi objeto de desconstrução e reconstrução, com os seus componentes a assumirem novos significados. (Como não lembrar a letra: «Eu tenho a vida / Partida / Em mil pedaços / Cola-os tu com dois abraços.»)
Muito interessante o tratamento operado em “Lembra-me um Sonho Lindo”, de Fausto, que, preservando o essencial, parte para trilhar outros caminhos. Encontramos um dos pináculos da jornada em “Senhora Santa Combinha”/”Ai de Mim, Tanta Laranja”, com aquela gravidade inicial em que Figueiredo pega, primeiro na melódica e depois ao piano, para transportar as canções para uma dimensão com ressonâncias bartókianas. A melódica traz de novo a bela melodia da canção alentejana – em tempos harmonizada por Lopes-Graça –, aqui acompanhada pela delicadeza das várias percussões.
Canção de embalar – também considerada uma canção de Natal dadas as referências ao menino Jesus –, originária da antiga freguesia de Monsanto, Beira Baixa, “José Embala o Menino” exibe uma solenidade tocante, com os vibrafones com arco e a melódica de Figueiredo a desenhar a belíssima linha melódica e a elaborar a partir dela. “Oh! Que calma vai caindo”, tradicional de Malpica, Beira Baixa – que José Afonso fez sua em “Contos Velhos, Rumos Novos”, de 1969 – deslumbra com a sua pulsação a emular o bater do coração (o nosso grande motor rítmico) excitado pelo calor, com notáveis opções tímbricas que lhe conferem um certo perfume magrebino.
“Laurinda, Linda, Linda”, romance tradicional do Algarve, conhece aqui uma leitura mais camerística, com o piano a assumir o controlo (como uma voz, mantendo intacta a linha melódica), após secção inicial mais exploratória. A melódica conduz a peça ao seu final. O arranjo inteligente de “Senhor Arcanjo” indaga a relojoaria da canção afonsina com um travo subsariano), mas acrescentando pontos (não se deixe escapar e brevíssima citação a “Os Índios da Meia-Praia” que se escuta mesmo no final). A fechar, “Macelada”, também originária da Beira Baixa, é ritmicamente agitada, com Figueiredo a desenhar linhas cristalinas, improvisando num pendor mais jazzístico
Cruzando passado e presente, tradição e modernidade, interpelando criativamente as raízes do que somos, “Mil Pedaços “ é um álbum deveras recompensador.
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Mil Pedaços (Roda Music)
Simantra GP & Luís Figueiredo
Luís Figueiredo (piano); Simantra Grupo de Percussão: Andrés Pérez, Leandro Teixeira, Luiz Ferreira e Ricardo Monteiro