Bode Wilson: “Aether” (Carimbo Porta-Jazz)
Carimbo Porta-Jazz
O Bode Wilson está de regresso. Oito anos depois da estreia com “26” e cinco após o segundo álbum, “Lascas”, o trio constituído pelo saxofonista e flautista João Pedro Brandão, o contrabaixista Demian Cabaud e o baterista Marcos Cavaleiro apresenta o seu terceiro, e notabilíssimo, registo, “Aether”, tal como os anteriores com selo do Carimbo Porta-Jazz.
A uma só voz, o grupo diz ao que vem: «A essência do Bode Wilson é o que se gera quando nos juntamos, seja à mesa ou no palco. Como na vida real, a nossa música parte da amizade, do respeito, da escuta. Um diálogo, uma conversa, um debate.» Irradiando a partir do Porto, João Pedro Brandão, Demian Cabaud e Marcos Cavaleiro são figuras essenciais do jazz nacional, todos músicos de predicados justamente enaltecidos pelo seu papel como líderes dos seus próprios projetos e noutras formações, onde por vezes tocam juntos – em especial a Orquestra Jazz de Matosinhos. O facto de se conhecerem particularmente bem move-os no sentido contrário ao da previsibilidade e da rotina. O novo “Aether” será o expoente máximo desse desejo renovado de explorarem em conjunto novas possibilidades e soluções para uma configuração instrumental criada pelo hard bop e amplamente desenvolvida pelo free.
“Aether” revela-se uma evolução natural no sentido da liberdade de expressão e da música totalmente improvisada. «Como grupo, a improvisação sempre foi um terreno explorado intensamente e que fomos aprofundando e tornando mais íntimo», explicam. No novo álbum os três indagam um contexto totalmente distinto, desta vez sem recorrer a material previamente preparado, partindo numa jornada sonora centrada no experimentalismo e na improvisação total. «Com isto quisemos criar uma amálgama/paisagem sonora que não é totalmente decifrável ou definida (por vezes é difícil entender que instrumento faz que som) e que está intimamente ligada com o ambiente natural em estivemos envolvidos.» «O contexto físico, que nos levou para um imaginário mais ou menos específico e que tem implícita uma calma e paciência latentes: o Bode está no campo, caminha e alimenta-se pacientemente, sem relógio, em harmonia e observando o que o rodeia», acrescenta o grupo.
O éter, esse impalpável quinto elemento muitas vezes invocado ao longo da história para tentar explicar o que não tem explicação. Segundo Aristóteles, éter é o componente da região acima do céu. O quinto hino órfico, dedicado a Éter, descreve a substância como «o poder reinante e sempre indestrutível de Zeus», «o melhor elemento» e «a centelha vital de todas as criaturas». E é deste modo que se apresentam as peças do novo Bode Wilson: voláteis, etéreas e imersas numa aura de mistério que perde na noite dos tempos. «Apesar da criação em tempo real, da improvisação livre, em cada uma delas quisemos fixar um quadro, que não estava definido até ao momento da emissão do primeiro som. Encaminhamo-nos para locais mais melódicos ou mais texturais, mais obsessivos, mais intensos, mais violentos ou mais pacíficos, mais clarividentes ou mais confusos.»
Gravado ao ar livre numa capela em ruínas, na Casa de Bouçós, algures no Minho, entre Valença e Monção, em outubro de 2021, “Aether” é uma obra em cumplicidade profunda com a envolvente, natural e construída. Na sua quintessência, a música que nele se escuta é um notável exercício de meditação, espiritualidade e comunhão com as forças do universo e a humanidade. Para o grupo, trata-se de «um local com o qual temos uma relação pessoal, com uma ruína de uma capela (sem telhado), onde gravámos. Um espaço que apela à introspeção, com uma acústica própria, mas com a interferência/influência e união com o meio natural: ouvem-se cães, pássaros, vento, ramos e folhas de árvores.»
Este é um trio que não se limita a fórmulas cristalizadas e que assume o risco de partir em busca de novas descobertas e de trilhar caminhos ignotos. Para além das habituais alfaias, saxofone, flauta, contrabaixo e bateria, o trio recorre ao charango (pequeno instrumento de cordas, de origem sul-americana, mais propriamente andina, que pertence à família do alaúde), a percussões várias e a uma pedaleira de órgão. A função inicia-se com “Friesta”, peça de contornos abstratos, com a flauta de Brandão a transportar-nos para outras latitudes, a secção rítmica numa efervescência prenhe de detalhes. “Desencanto” é vinheta de dimensão mais onírica, funda-se num motivo proposto pelo contrabaixo e tem o saxofone límpido de Brandão e percussão de filigrana. “O Eremita” assume contornos mais camerísticos, que, de alguma forma, têm continuidade em “Procissão”, com Cabaud, magnífico, a recorrer ao arco e a conferir uma certa solenidade grave, sobre a qual paira o saxofone, em ruminações improvisadas.
“Iniciação” é mais tensa, com o saxofone sinuoso e a pedaleira de órgão a conferir um efeito encantatório. “Ancestros” tem Brandão a explorar técnicas menos convencionais no seu instrumento, resultando numa peça de atmosfera intrigante, estendida em “Lacrau”, com saxofone e cordas tangidas em diálogo, a par da relojoaria rítmica. “Ladainha” parece radicar, ainda que subliminarmente, em melodias imemoriais. “Vale”, com Brandão de novo na flauta e o contrabaixista a recorrer exemplarmente ao arco, é um momento contemplativo e de grande serenidade. Já “Ventre” é toda ela agitação, turbilhão primordial, com recurso à pedaleira, acrescentando densidade, saxofone em voo livre. A culminar, “Nascimento de um Astro” mergulha numa ancestralidade difusa que interpela a nossa própria ampulheta.
Este Bode Wilson é hoje uma das mais desafiantes formações nacionais. E “Aether” um disco que a cada audição se deixa descortinar em toda a sua monumentalidade. Soberbo.
-
Aether (Carimbo Porta-Jazz)
Bode Wilson
João Pedro Brandão (saxofones alto e soprano, flauta, pedaleira de órgão); Demian Cabaud (contrabaixo, charango); Marcos Cavaleiro (bateria, percussão)