Neighbour Lizard: “Neighbour Lizard” (Robalo)
Robalo
A notícia do surgimento de um supergrupo formado pelo contrabaixista Nelson Cascais, o guitarrista André Fernandes, o baterista João Lencastre e o saxofonista João Mortágua é, desde logo, motivo para elevar as expetativas. Depois do concerto em que a formação se deu a conhecer, no Liceu Camões, recenseado aqui, chega agora o disco de estreia “Neighbour Lizard”, com selo da Robalo. A jazz.pt já o ouviu.
Nelson Cascais, André Fernandes e João Lencastre são figuras essenciais do jazz nacional da última vintena de anos, repartindo o seu trabalho por inúmeros contextos e formações, e, todos eles, com fortes relações internacionais; João Mortágua, mais jovem, também tem vindo igualmente a grafar a traço grosso o notável saxofonista que é em diversos projetos, próprios e alheios, cotando-se hoje como uma das principais forças criativas do jazz nacional. Quatro personalidades artísticas muito fortes, quer na dimensão composicional, quer enquanto excelsos improvisadores, sempre atraídos pelo risco de experimentar novas soluções.
A ideia para este projeto surgiu a Nelson Cascais durante o confinamento de 2021, numa residência artística do projecto Jazz Composers Workshop, tendo a partir daí buscado apoio no programa “Garantir Cultura”, iniciativa destinada a mitigar os impactos da crise pandémica no setor cultural e estimular a gradual retoma da sua atividade. «Pensei que seria interessante reunir um grupo de músicos durante uns dias com o propósito de criar e gravar música nova e que este processo fosse partilhado com outras pessoas», começa por explicar o contrabaixista à jazz.pt. Num movimento pouco visto, as portas do estúdio foram abertas ao público, que teve assim ensejo de assistir ao trabalho em progresso e de trocar impressões acerca da música que dele ia nascendo. «Foi muito gratificante», acrescenta Cascais. Para o guitarrista André Fernandes, a característica central do projeto é o facto de este assentar na espontaneidade de todo o processo, não se perdendo muito tempo a pensar a música, mas «a confiar que qualquer direção assumida pelos quatro será a certa naquele momento.» Fundamental foi também «a base de aceitação da personalidade de cada um enquanto compositor e intérprete.» O saxofonista João Mortágua também salienta o quão especial foi a experiência: «A música resultou, de modo geral, em algo único e especial, em que o todo é maior que a soma das partes. Este projeto nasceu de um laboratório de ideias, mas rapidamente se tornou numa banda, sólida e coesa.»
Um olhar pela ficha técnica e logo um aspeto ressalta, a repartição equitativa dos créditos: oito peças, duas da autoria de cada membro do quarteto, espelhando um modus operandi em que não existem quaisquer hierarquias ou protagonistas. Todos são líderes, todos suportam, todos brilham com luz própria e cintilante. É André Fernandes quem revela: «O convite foi feito pelo Nelson para que cada um pensasse em duas músicas, que depois seriam trabalhadas em estúdio e gravadas quase em simultâneo.» O guitarrista ficou satisfeito com todo o processo criativo, que «reflete bem o que cada um é no momento e o que o grupo toca quando exposto a música nova». Também Lencastre realça a natureza «fácil e natural» do processo criativo. «Para além de serem músicos dos quais sou fã, já tocamos juntos há vários anos e em diferentes projetos. Com o Nelson e o André já lá vão quase 20 anos! E sinto com todos eles uma forte ligação musical», completa o baterista. «Um projeto de multiliderança onde todos contribuem de igual forma para a parte de composição e arranjos», reforça.
O que se desvenda em “Neighbour Lizard” é um jazz avançando assente num imenso lastro neste domínio, mas também no rock, soltando amarras em direção ao imprevisível. «Algumas peças foram compostas previamente, outras foram totalmente criadas no estúdio», revela Cascais. Cada músico transmitiu aos demais algumas diretrizes para uma possível abordagem às suas composições, mas, salienta, «o processo de construção do que veio a ser cada uma das peças e, da soma destas, o álbum, foi totalmente colaborativo.»
Encontramos um dos melhores momentos do álbum logo nos seus alvores, com uma peça de Nelson Cascais, “Turritopsis Nutricula”, nome atribuído a uma criatura que habita as águas profundas do oceano e que a comunidade científica acredita ter a capacidade de se regenerar de modo infinito. A atmosfera da música, enigmática e densa, alude precisamente a esse ambiente. Guitarra, contrabaixo e bateria tricotam uma base, até emergir, límpido, o saxofone de Mortágua. A melodia é exposta, e a sua interpretação aberta, sem harmonia e uma pulsação rítmica constante; segue-se improvisação livre até que a melodia-base é retomada. “Poro”, da autoria do saxofonista, parte de «uma certa ideia de nostalgia, saudades de um tempo que já (não) vivi» e é mais distendida, tentando o compositor tentado, com sucesso, verter nos acordes, contrapontos e ambientes «a aceitação dessa verdade, com toda a sua profundidade e vulnerabilidade.» Mortágua plana sereno, Fernandes gere harmonicamente e a secção rítmica revela-se sempre disposta a acrescentar elementos.
Deveras surpreendente é a laboratorial “Humano Sintético”, a primeira das peças assinadas por um André Fernandes decidido experimentar algo diferente. A palavra ao próprio: «Samplei o som de cada um dos outros três, vários registos e timbres de cada. Depois tratei a peça como uma produção de estúdio, em que toquei cada instrumento, saxofone, bateria e contrabaixo com um teclado que controla esses samples e escrevi a peça de uma vez só, como se fosse improvisada, mas com o som de cada um no software como um instrumento virtual, exceto a guitarra que foi mesmo tocada.» Mais à frente no alinhamento, na outra peça de sua autoria, “Bebinka”, mais etérea, o guitarrista seguiu um caminho particular, pedindo a cada um dos outros três que improvisasse durante uns minutos isoladamente: «Primeiro Mortágua, depois Lencastre tocou sobre a gravação do Mortágua e a seguir o Nelson sobre os dois. Depois montei essas improvisações e toquei por cima.»
As duas peças de Lencastre contrastam entre si e resultam particularmente bem com esta formação. Ambas assentam em material escrito, mas também incluem partes com bastante abertura à interpretação, resultando em novos caminhos para a improvisação. “Neighbour Lizard” é lançada por Lencastre, contrastada pelas linhas claras da guitarra de Fernandes e pelo saxofone de Mortágua, sempre num diálogo imprevisível, que se afasta reaproxima do motivo central. “Zoladkowa” mantém a aura de mistério, com a bateria hiperdetalhada de Lencastre e a guitarra mutante de Fernandes, que evoluem em crescendo, até que tudo retorna à tranquilidade primitiva. “Vampyroteutis Infernalis”, outra criatura das profundezas dos mares, é a segunda peça de Nelson Cascais, e releva uma forte pulsação (os quatro músicos têm raízes no rock), com a guitarra de Fernandes, a espaços gilmouriana, e o saxofone ziguezagueante. “ACM”, saída da pena do saxofonista, é um hino simultaneamente simples e épico, como, diz o autor, «só o amor sabe ser».
“Neighbour Lizard” é uma estimulante jornada sonora que nos prende desde as primeiras notas e que acrescenta pontos ao pecúlio de cada um dos quatro músicos. Longa vida ao vizinho lagarto.
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Neighbour Lizard (Robalo)
Neighbour Lizard
João Mortágua (saxofone alto); André Fernandes (guitarra); Nelson Cascais (contrabaixo); João Lencastre (bateria e teclados)