Torben Snekkestad / Søren Kjærgaard: “Another Way of the Heart” (Trost)
Trost
“Another Way of the Heart” é a estreia em disco da dupla formada pelo pianista dinamarquês Søren Kjærgaard e pelo saxofonista, clarinetista e trompetista (rara combinação) Torben Snekkestad, norueguês, dois músicos fundamentais na cena nórdica do jazz e das músicas improvisadas, com ligações a uma miríade de outros nomes influentes. A jazz.pt escutou o que fizeram em conjunto.
O trabalho de Søren Kjærgaard (n. 1978) como pianista, compositor e improvisador abrange uma variedade de contextos, sendo de ressaltar o seu trio transatlântico com o contrabaixista Ben Street e o baterista Andrew Cyrille, e a colaboração em duo com o escritor, músico, realizador de cinema e antigo tenista profissional Torben Ulrich (pai do baterista dos Metallica, Lars Ulrich). As suas atividades nos anos mais recentes têm-se sobretudo centrado na exploração da música e do som, combinando composições com improvisação e com a prática performativa. Isto tem-lhe permitido criar uma vaste rede de colaborações, receber encomendas e nutrir uma discografia avantajada.
Ao longo dos anos, Torben Snekkestad (n. 1973) tem vindo a explorar diversos domínios musicais, que vão da improvisação livre ao jazz mais “convencional”, como líder e sideman, passando pela música de câmara ou como solista em orquestras sinfónicas. A sua abordagem aberta e desafiadora de géneros e rótulos, sempre eivada de um lado poético, tanto assenta em técnicas convencionais como estendidas, improvisações intuitivas e numa sábia utilização de estruturas e texturas. Entre o rol de colaborações avultam os nomes de Evan Parker, Barry Guy, Nate Wooley, Lotte Anker, Arve Henriksen, Raymond Strid, Peter Evans, Augustí Fernández, Paal Nilssen-Love, Jon Balke, entre diversos outros.
Kjærgaard e Snekkestad já haviam colaborado antes no trio The Living Room, com o baterista norueguês Thomas Strønen e num quinteto ad-hoc liderado pelo baterista dinamarquês Peter Bruun. A dupla acaba de editar na vienense Trost o álbum “Another Way of the Heart”, com uma dúzia de peças creditadas a ambos e cujos títulos são adaptações de textos do já mencionado Torben Ulrich, na obra “Meridiana: Lines Toward A Non-local Alchemy” (Escho, 2014), a terceira e última colaboração entre Ulrich e Kjærgaard, inspirada nos diferentes significados e usos dos meridianos nas tradições orientais (taoísta-alquímica) e ocidentais (geonavegação).
Escrevem Ulrich e Kjærgaard nas liner notes do projeto, parafraseando o poeta galês Dylan Thomas: «Embora ousemos remover uma palavra, queremos enfaticamente evitar a sensação de estabelecer outro oposto de algo, uma estrutura dualizante, sugerindo uma mudança de modo, um caminho alternativo: ainda queimando, ainda aberto, para intensificar a consciência das faculdades, indo gentil, gentil, não apenas na boa noite, mas em outros lugares; e talvez até acrescentando, independentemente da idade.» (tradução livre do autor destas linhas)
O álbum foi (muito bem) gravado em agosto de 2021 em Giske, ilha norueguesa, num estúdio localizado no «fim do mundo, à beira do mar com a claridade proporcionada pelo horizonte aberto.» Lugar perfeito para reflexão, meditação e experimentações delicadas com sons acústicos. Ter gravado noutro local teria certamente feito toda a diferença no resultado final. Verdadeira ode à fragilidade das nossas vidas inconstantes, “Another Way of the Heart” revela Kjærgaard e Snekkestad a darem passos em frente nas respetivas discografias, que, de certa forma, não faziam jus aos respetivos potenciais criativos. O álbum revela um conjunto de peças exclusivamente acústicas, de pendor sereno e contemplativo, embora a tranquilidade seja, por vezes, apenas aparente, se atentarmos no subtexto do que escutamos. Domina uma música paciente e reservada que se desvenda de forma delicada, desafiando espaços e tempos, mas que jamais resvala para a sonolência ou previsibilidade.
Escutamos diálogos profundos entre saxofone e piano, com o silêncio a intrometer-se. “The Always Acting Nothing” tem saxofone sussurrado (que nos remete para a shakuhachi, flauta japonesa tradicionalmente associada ao budismo zen) e piano explorado até às entranhas. A atmosfera é densa e intrigante. “Gentle Latitudes” é mais dócil, sempre com o saxofone delicado e o económico piano.
O quase silêncio de “Holding Mountain, Holding Movement” é pontuado pelas notas esparsas dos dois instrumentos; em “Into Particles of Light” reina a tranquilidade absoluta, da qual se elevam pequenos fragmentos melódicos, que de tão ténues são por vezes quase impercetíveis. Uma ligeira agitação pode ser detetada em “Nourishing This Between”, feito de uma quase parada e resposta com luvas de algodão. A melodia sub-reptícia paira, solene. O piano etéreo está no centro de tudo em “Origin Returns to Fire”, ainda que sons esdrúxulos o afaguem.
A belíssima “Radiant recomposed” é mais abstrata, assente nos multifónicos e em que do saxofone de Snekkestad brotam sons que se assemelham ao canto de aves no dealbar de mais um dia. Em “Spechless Thunder”, ao piano solene juntam-se sons de um saxofone abordado de forma pouco convencional, criando uma atmosfera enigmática. “A Speed Already Altered” é guiada pelo saxofone, com uma serenidade inquietante, acolitada pelo piano rarefeito. A espiritualidade que emana da suíte “Wind and Floating Lines”, dividida em três partes, parece ter sido intitulada a partir do que se escuta (ou terá acontecido o inverso?), com o saxofone a prestar-se ao comando de Éolo, mais suave ou mais agreste, acompanhado pelas notas lamentosas do piano.
“Another Way of the Heart” é um monumento de serenidade, verdadeiro bálsamo para as tribulações da vida, onde as melodias nunca são o que parecem. Retomando Albert Ayler, a música é mesmo a força curativa do universo.
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Another Way of the Heart (Trost)
Torben Snekkestad / Søren Kjærgaard
Torben Snekkestad (saxofones tenor e soprano, clarinete, trompete); Søren Kjærgaard (piano)